Cap 1

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A imagem de sua mãe ensanguentada no chão e de seus pedaços parcialmente espalhados pela parede da cozinha ainda refletiam nos seus olhos castanhos e a aterrorizavam profundamente. Quando a garotinha encontrou sua mãe despedaçada no carpete, a balançou como pôde, tentou acordá-la. Gritou "Mama" incontáveis vezes, mas ela não acordou. Continuou com seus olhos negros arregalados, completamente imóveis e sem vida, mas ainda carregando em suas íris o mesmo medo angustiante que sentia pouco antes de morrer. A menininha desistiu de tentar acordá-la e apenas deitou ao seu lado, abraçando aquilo que havia sobrado de sua mãe.

Já haviam se passado horas, a noite tinha pintado o céu e a escuridão tomado conta da casa, mas a menina havia se mexido apenas para buscar um cobertor para que sua mãe não ficasse com frio. Podia sentir suas perninhas dormentes, como se um formigueiro inteiro passeasse por elas, resultado de tê-las deixado tantas horas paradas na mesma posição. Seu estômago reclamava por estar vazio e sua garganta arranhava por estar seca. Sua mente começava a ficar cansada e suas pálpebras ameaçavam se fechar quando escutou passos pesados se aproximando de onde estava. Imediatamente seu corpo tencionou e ela se cobriu por inteiro, como se fugisse do bicho papão e aquele fino tecido fosse uma armadura impenetrável que a protegesse. Os passos ficavam cada vez mais altos e chegavam cada vez mais perto. Seus olhos transbordavam em lágrimas como pequenas cachoeiras. Ela implorava internamente que fosse o bicho papão quando ouviu os passos pararem e a coberta ser levantada, mas o que a pequena viu a aterrorizava mais do que qualquer monstro que pudesse imaginar. Era o seu pai, segurando aquilo que provavelmente usou para despedaçar sua mãe.

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Katherine quase se assustou ao ser tirada do seu transe pelo toque nada suave do despertador. Ela podia sentir suas têmporas protestarem contra o barulho estridente que derramava de seu aparelho e lhe invadia os tímpanos como pequenas agulhas afiadas. Se amaldiçoou mentalmente por ter colocado o celular tão perto de seus ouvidos.

Ainda assim, seu corpo gelado, coberto até a cintura por uma fina coberta cinza, não se mexeu. Permaneceu intacta, com a cabeça virada para cima, com seus olhos amendoados vidrados no teto, como se buscassem encontrar respostas nos padrões imperfeitos de mofo esverdeado que pareciam dançar no teto. Uma indignação instantânea a invadiu, um arrependimento por ter aceitado se hospedar naquele chalé. Com certeza, colocá-la nesse ambiente sufocante para investigar uma morte que era claramente acidental, com certeza foi uma forma de seu chefe se vingar de suas atitudes "rebeldes" das últimas semanas.

Seus cachos como revoltosos tentáculos se esparramavam lindamente pelo travesseiro, de fronha branca amarelada com um odor de... guardado. (Ela mataria seu chefe em algum momento.) E seus lábios carnudos, levemente ressecados, estavam abertos o suficiente para suspiros fantasmagóricos de inverno passearem entre eles.

Katherine mal havia dormido. Passou mais uma noite afundada em sentimentos agoniantes, tentando desenlaçar os fios bagunçados de sua mente. Não lembrava-se de um bom pedaço de tempo da noite. Não sabia se havia ficado dispersa demais da realidade, como sempre acontecia, ou se tinha apagado por alguns minutos. A segunda opção parecia menos provável, já que toda vez que tentava se desligar e descansar, seu cérebro a presenteava com tormentosos pesadelos. Eram constantes, devaneios distorcidos que não a deixavam em paz. Perdeu as contas das vezes que acordou trêmula enquanto chorava, ou das várias vezes que despertou enquanto gritava.

...

Mesmo que já estivesse acordada, demorou alguns minutos para que ela saísse do "mundinho" que criou em sua mente e acordasse para o mundo real. 

Os "gritos" musicais ainda ecoavam pelo ambiente quando foram interrompidos por um dedo fino, com uma unha curta, sem esmalte e muito provavelmente mais gelado que as ervilhas do refrigerador

Hereditário (Sáfico)Onde histórias criam vida. Descubra agora