Ato IV - Eu vi seu corpo ser devorado pelas chamas

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Um cervo devorava a grama alta e molhada, que traçava a estrada como uma linha mal feita. O carro estava em alta velocidade, por essa razão, o homem não conseguiu avistar o cervo tempo o suficiente para frear o carro. Por isso, tentando se esquivar do cervo, o homem girou todo o volante de uma vez.

Fazendo o carro perder o controle.

O cervo saiu assustado, mas, em compensação...

Tentando amenizar o impacto do acidente, o homem colocou o carro para a direita. Ou seja, todo o impacto da batida foi todo em cima da mulher. O carro saiu capotando ao decorrer da pista.

Mas não eram simples trombadas no chão. Eram batidas violentas. Os vidros foram todos quebrados. Alguns dos estilhaços perfuraram a cabeça da mulher e rasgou metade dos seus olhos. As portas do carro foram arremessadas para longe e o banco do passageiro saltou para cima, se chocou contra o galho da árvore e caiu em cima dos cacos de vidro que sobraram no chão.

O tanque de gasolina fora rasgado e o líquido deslizava por entre o corpo da mulher, pelos destroços que sobraram do carro e...

Pelo corpo da criança e o homem.

E Anne os observava atônita. Com lágrimas nos olhos e com o cérebro doendo. De repente, parecia que estava sentindo a dor que a criança sentia. Sabia disso porque o menino era a única pessoa que estava consciente.

Havia muito barulho e o choro era bastante visível.

O desejo da menina era sair correndo dali à procura de ajuda. Mas sentia que suas pernas estavam perdendo a força aos poucos. E, com a dor, ajoelhou-se em meio aos destroços e começou a sentir o sangue sair pela sua boca.

Mas nada, nada do que aconteceu com ela a importava. Ela estava preocupada com a mulher, que não falara nada, e parte do seu rosto fora destruído.

A criança ergueu a cabeça devagar e olhou para a mulher...

— Mamãe... — Anne e a criança falaram ao mesmo tempo.

E Anne percebeu que, realmente, sentia tudo, absolutamente tudo, que a criança sentia ao ver sua mãe caída, coberta de gasolina e com metade do rosto deformado.

— Papai... — agora a criança (junto com Anne) olharam juntos para o homem. Que resmungava alguma coisa e tentava se levantar.

— Tom, está ai? — era o homem, que agora olhava fixamente para o motor do carro e para as faíscas que saiam do fio elétrico do poste, onde derrubou com a batida do carro. Anne também se preocupou quando percebeu, sabia que se aquele fio elétrico tocasse o chão, com a gasolina, algo de muito ruim aconteceria — Temos que sair daqui, filho, ou vamos morrer.

— Mas e a minha mãe? — retrucou Anne e o menino juntos.

— Ela... — o homem fechou os olhos sangrentos, tossiu um líquido amarelo e começou a chorar. Um choro em forma de desespero. Um choro de consciência pesada. Um choro da realidade exposta diante dos seus olhos. Sua esposa estava morta... — Está bem, filho. Só está dormindo. Preciso tirar você daqui.

— E vamos deixá-la?

— Volto para buscá-la depois... — disse o homem, ao mesmo tempo em que tentava se levantar, mas sentiu uma dor insuportável. Uma dor fina, como se tivesse recebendo vários beliscões ao mesmo tempo, na parte inferior da sua perna. Quando olhou para lá, viu um corte profundo que vinha da sua panturrilha até a sua coxa. Sentiu-o arder, mas precisava reunir forças para tirar o filho dali. O fio elétrico, que bambeava no ar, se aproximava cada vez mais do tanque de gasolina.

Anne observava toda aquela cena com várias emoções bombardeando seu coração. Estava preocupada com aquela família. E por mais que não sentisse suas pernas e visse o sangue preto acumulando-se, queria apenas salvar aquele homem — a qual tinha grande amor e respeito — e voltar para buscar a mulher. A Anne consciente sabia que a mulher estava morta. Mas a Anne ligada à criança tinha esperanças de receber outro abraço apertado.

O homem, com muito, muito esforço, tentou levantar o filho. E, ao ver a situação da perna do menino, o choro aumentou e agora mais do que nunca precisava tirá-lo dali. Um vento forte chocou-se contra eles e o fio elétrico se balançou e se soltou, quase não encontrou a gasolina.

O homem agora carregava o filho devagar. Colocara a mão da criança em seu pescoço e a levava com cuidado para longe dos destroços do acidente.

Porém, desta vez, a árvore onde o resto do carro estava, acabou caindo em cima do poste de eletricidade. O homem viu aquela cena, sabia do que viria depois e também que não estava longe o suficiente. Pegou o filho, colocou-o contra o corpo, fechou-o, como se fosse uma concha.

E, assim, em forma de escudo, protegendo o filho com seu próprio corpo. Ouviu-se uma explosão fortíssima. E o fogo consumindo, não somente o carro e o corpo da mulher, mas as costas, a cabeça, e todo o corpo do homem. Que sentiu cada fibra ser queimada. Que sentia cada parte do seu cabelo torrar. As lágrimas que desciam dos seus olhos caíram sobre Tom, a criança, que sentia o calor e sabia do sacrifício do pai. Olhou para cima, viu os olhos do homem fechados e sussurrou uma última vez: Eu te amo!

O home usou seu corpo para fazer uma capa para proteger seu filho. O menino estava desmaiado, agora, depois de ter sussurrado.

Anne viu tudo acontecer. E, ajoelhada, desbabou no chão igualmente.

E, tempo depois, ao abrir os olhos.

Via que estava, novamente, na praia onde acordou e fora levada ao parque. Mas, não existia parque. Apenas uma cabana. Uma velha cabana. Anne ouviu alguém se levantar ao lado e olhou, espantada, para ver uma criança.

A mesma criança que sofrera o acidente. Ficou sem entender, sem saber o que dizer.

Tom, que parecia desnorteado, viu a cabana em frente a ele. E, com o corpo cheio de areia e de sangue, levantou-se devagar. Olhou assustado para a cabana e seus olhos se fecharam e seu corpo caiu.

Anne seguiu seu exemplo e o pesadelo havia acabado.

Estava na roda gigante, em frente ao homem encapuzado, esperando por alguma explicação...

O Doador de SonhosOnde histórias criam vida. Descubra agora