Parte 2

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          Tatagiba morava não muito distante dali. As duas funcionavam juntas justamente porque quando o açúcar de Kátia baixava, o cérebro de Adriana continuava trabalhando ao mesmo tempo que suportava o mau humor da parceira. Além do mais, ambas respeitavam a etnia uma da outra, sem comentários racistas contra japoneses ou indígenas, que tanto uma quanto a outra já ouvira de parceiros anteriores. T. já tinha que reafirmar sua competência para os homens do departamento só por ser uma mulher indígena guarani, agora sendo mãe ela sabia que as dúvidas dobrariam e por isso mesmo gostava de se informar do que acontecia no trabalho, dos casos enquanto vivia a maternidade de primeira viagem.

          Foi no intervalo de uma fralda e outra que Kitamura chegou para lhe contar do caso mais esquisito depois de sua licença – e olha que, de esquisitice, as duas conheciam muito.

          – O que você disse que ela carregava mesmo?

          – Só aquele relógio diferentão no pescoço e o papelzinho amassado na mão. Tá aqui a foto, ó. – K. mostra o pequeno cartão pela galeria do celular à T., que esquentava comida para as duas. Ainda olhando para os arquivos, Kitamura acrescenta:

          – Aqui diz que ela parecia querer entrar na igreja.

          – Hmm. Será que frequentava a igreja? Talvez fosse à festa mais tarde. Alguém por lá a reconheceu?

          – Objetivamente não, mas ela era conhecida de uma comunidade vizinha, a avó dela principalmente. Acho que talvez ela até fosse católica, mas pelo que dizem os outros, não era muito ativa, não.

          – Interessante. O que ela pretendia fazer lá, será – não era exatamente uma pergunta. Enquanto tomava os arquivos das mãos de Kitamura e os lia por si mesma, Adriana Tatagiba deixava aflorar aquele olhar que tanto sintonizava com a sua parceira e que indicava que seu cérebro pré-disposto à arte de deduzir entrava em ação. Isso lembrou K. de uma coisa.

          – Ah, deixa eu ver se ainda tem pé-de-moleque na bolsa.

          – Que pé-de-moleque! Tá na hora do almoço.

          – Eu tô com fome de doce, amada – foi sua resposta sarcástica.

          Tatagiba deixou essa passar, consumida pelas mensagens enigmáticas do bilhete. Ele poderia até ser irrelevante, se Milena não estivesse com um relógio incomum no pescoço. E ora, vejam só, o relógio marcava 10:10, coincidentemente um dos horários que aparecia no cartão: 10:10. Sete horas e sete minutos para 08:08 - 17:17. Coincidência ou não? O que poderiam ser todos aqueles horários? Relógio no pescoço, relógio na catedral, cartão de relojoaria, aquilo aparentava ter um padrão, só precisavam descobrir qual...

          De repente, crack! Tatagiba e Kitamura se olham com cara de susto ao som do que parecia algo duro se quebrando. Num misto de desespero e pavor, K. cospe um resto de pé-de-moleque que mastigava na mão e o que aparece não é somente doce misturado com baba, também há um pequeno fragmento branco e duro e, a julgar pelo vão que ela sente no molar esquerdo superior, acabou de quebrar um dente.

          – Merda!

          – Eu falei pra você não comer doce na hora do almoço, olha o castigo aí – T. disse em tom de deboche, mas, diante da ferocidade da parceira parcialmente desdentada, acrescentou logo. – Anda, vamos comer logo, eu já sei aonde temos que ir.

          – E onde é? – ela pergunta ainda passando a língua no dente que falta.

          – Na relojoaria, essa tal de Clock Master. Fica lá na Galeria do Rock, vai ser fácil de achar.

          – Hmm. E o que você espera conseguir por lá?

          – Ah, não sei. Talvez entender esse bilhete, ver se a teoria do seu parceiro pode ser verdade.

          – O que, aquela história de roubar relógios pra consumir drogas?

          – Por que não? – Tatagiba sugeriu. – Em mortes dessa natureza, tudo é possível, se bem que eu apostaria em outra coisa. Enfim, você não se importa se eu colocar minha bombinha de leite e uma camisa limpa na sua bolsa, não é? É que se eu não tiro leite às vezes, fico toda dolorida.

          – Ah claro que não – ela era a mochileira da dupla mesmo. Na bolsa de Kitamura se achava de tudo, e se perdia de tudo também. 

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