Parte 4

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          Era uma ruela estreita, não muito longe da Catedral de São Paulo, mas num bairro bem menos vistoso do que o da praça. Ao que elas sabiam, era a casa da avó de Milena, agora já falecida, e onde a garota era somente turista. Havia carros da perícia por lá e algumas viaturas também, provavelmente por causa de Milena e não da avó. Soares esperava do lado de fora, conversando com um sujeito da polícia científica, quando avistou Tatagiba e Kitamura se aproximando.

          – Tatagiba, mas já? Deu quatro meses e eu nem tô sabendo?

          – Não ainda, mas falta pouco – ela disse com um sorrisinho discreto, mas, sem rodeios, continuou antes que ele se opusesse à sua presença. – Escuta, descobrimos algumas coisas sobre o caso de hoje de manhã.

          – Ah, é? Bem, eu também. Vamos entrando que eu mostro a vocês.

          A casa era simples por fora, bem acabada em cimento, assim como todo o quintal da frente. Não era muito grande, haja visto que uma senhora terminal morava ali. A entrada dava já para a cozinha; mais à frente, pelo corredor, chegava-se à sala e, na parede esquerda, a um banheiro, o único da casa. O acabamento interno era muito semelhante ao de fora e, de alguma forma, apesar de uma ligeira bagunça demonstrando que eventos incomuns haviam acontecido ali há pouco tempo, dava para perceber que aquele era um ambiente relativamente organizado, sem excesso de objetos, talvez para facilitar a limpeza, mas tudo o que tinha parecia estar em ordem.

          No canto direito da sala, encontrava-se a porta que dava para o único quarto da casa, o quarto da senhora que Soares disse chamar-se Verônica, e de Milena, quando ela estava por lá. Avançando, os três puderam ter um vislumbre do cômodo. Um perito que ali estava com câmeras, saiu para dar mais espaço – aquele não era um quarto grande. T. e K. puderam ver melhor: com certeza era o lugar menos organizado da casa. A roupa de cama estava mexida e havia uma marca profunda no colchão, indicando que alguém passara muito tempo acamado ali. Havia ainda uma cadeira ao lado da cama, entre ela e a parede da janela. Na mesinha ao lado da cama, um copo de água pela metade, uma infinidade de remédios e um papel dobrado – nem um pouco estranho para Tatagiba, que sentia o estar vendo pela terceira vez só naquele dia.

          – Do que foi mesmo que ela morreu, a Verônica? – K. quis saber.

          – Câncer. Já era paciente terminal há uns quatro meses, segundo a vizinha que cuidava dela.

          – E a Milena a viu morrer? Sabia disso, por um acaso?

          – Sim, me disseram que ela chegou não muito depois da 08:00 da manhã e ficou o tempo todo no leito da vó até ela morrer, depois disso saiu com pressa. Isso tudo a vizinha que falou.

          Enquanto Kitamura e Soares se atualizavam, e a investigadora contava a pequena aventura das duas na Galeria do Rock e suas impressões, Tatagiba percorria, atenta, os olhos pelo quarto, objeto por objeto. Ativava também seus outros sentidos à procura do que sabia que tinha ali e que iria descobrir. O quarto cheirava a umidade e álcool de limpeza, o cheiro deixava um gosto amargo na boca, o que gerava uma atmosfera de doença para o lugar. Na parede oposta à cama, coisas normais de quarto: guarda-roupa, cômoda, sapateira e uma discreta penteadeira, sobre a qual jazia uma caixa de relógio aberta. Elegante e meio retrô, poderia ser muito bem a caixa do relógio de Milena, mas como garantir? Não havia o nome da loja nela, só uma inscrição na parte interna da tampa: CM: Relógio atrasado – 17:17. Tempus edax rerum.

          Interessante, T. pensou.

          – Você não acha, Giba?

          – O quê? Do quê? – ela disse distraída.

          – Que ainda é cedo pra fechar o caso e encaminhá-lo pro controle de narcóticos, quer dizer, nem temos o exame toxicológico dela pra saber se era mesmo usuária. E sobre o relógio...

          – Você mesma disse que a vendedora era esquisita – Soares a interrompeu.

          – É, mas esquisitice não é pretexto pra atividades ilegais.

          – Achem o que quiserem, mas as coisas fazem sentido. A Milena era distante da avó, veio aqui só porque ficou sabendo que ela ia morrer. E ainda levou um tempão para fazer isso, tiveram que insistir muito pra ela vir ver a própria avó, quem criou ela desde pequena. Ninguém sabe dizer o que ela fazia pra viver ou onde morava. Não tem registro de moradia ou trabalho fixo; ela é um mistério, mas o que sabemos é que morreu de um mal súbito, ou chame do que quiser. Nova, sem histórico de doenças precoces na família, ainda com um relógio que custa bem mais do que ela deve conseguir por ano fazendo sabe-se lá o quê. É um mistério, isso é fato, mas não é sobre assassinato, é sobre tráfico, mercado ilegal ou coisa do gênero.

          Kitamura, já cansada da voz de Soares, olhou para Tatagiba com uma expressão de tédio, na esperança da parceira fazê-lo se calar dando uma hipótese menos medíocre. T., por sua vez, olhou absorvida para a mesinha ao lado da cama, mirando aquilo que lhe trouxe a sensação de déjà vu assim que entrou no quarto.

          – Concordo com você, Soares – T. disse, e K. esperou para ver se entendeu bem. – Em partes, é claro.

          Ela deu alguns passos à frente em direção ao móvel que fitava e pegou o papel entre o mar de remédios que havia ali. A folha não era qualquer uma, tinha um fundo com um misto de cores coloridas e suaves em tons pastéis. Era enfeitada nas laterais com desenhos delicados e infantis. Aquilo, Tatagiba nos seus 31 anos sabia, era papel de carta, o sonho de qualquer colegial da década de 1990.

          – O que é isso? – K. lhe perguntou.

          – Parece uma carta, escrita num papel de carta.

          – Estranho, não foi aquela que a gente viu na... Na onde mesmo?

          – Na Clock Master! – elas disseram juntas.

          – Será que era da Milena? – K. indagou. – Lê o que tá escrito, Giba.

          Soares, apesar de dar o caso encerrado pelo DHPP, também queria ouvir o que tinha na tal carta. Quem sabe não estava certo? Tatagiba deu uma leve pigarreada e começou a ler a carta em suas mãos:

          "Se eu estiver lendo isso é porque, de fato, aquele velho não é tão doido quanto eu pensava, e significa, Milena do passado, que você ainda tem a chance de pelo menos aliviar parte da sua culpa miserável depois do que ainda vai acontecer, acontecer de fato. A dura verdade é que vovó vai morrer hoje. Como eu sei disso? Eu sou você algumas horas mais tarde, alguém que não tem a mínima pretensão de continuar a viver muito tempo depois de terminar esta carta, mas que não poderia pôr um fim a si mesma sem antes abraçar a última oportunidade de voltar e pedir perdão à Dona Verônica antes dela partir completamente desgostosa com a neta que tem. E, por mais que esta carta não faça sentido nenhum para você, que mais pareça outra alucinação, eu espero sinceramente que você não pague para ver. A única coisa que dói mais do que perder a nossa segunda mãe, é o arrependimento de não acertar as coisas com ela. Então peça perdão primeiro por, mesmo depois de ela ter perdido a filha e criado uma neta ingrata, você só tenha dado desgosto atrás de desgosto. Peça perdão e assuma que foi por causa daquelas coisas podres que você disse ao Nícolas três anos atrás, que ele desistiu de viver, fazendo vovó perder mais um neto, mais um filho. Como se já não bastasse, somos a última perda dela, perdida para a cocaína, pra escuridão da falta de perspectiva e pra tudo que importa na vida. O câncer pode até ser a doença física que vai matar ela, mas você também a matou aos poucos, decepção atrás de decepção, então ao invés de dar meia volta e se perder consumindo no que é mais fácil, vai agora mesmo para a casa da vovó e dê um último adeus a ela. Assim, quando você chegar na torre do relógio hoje à noite pra dar um fim em si mesma, terá uma dose a menos de arrependimento pra contar."

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