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As crianças pulavam corda, riam e cantarolavam a canção que provocava arrepios em Marcel. Não se considerava supersticioso, mas estava longe de ser fã de um grupo de crianças cantando coisas bizarras, ainda mais em uma pequena cidade do interior. Havia se passado quatro dias desde que deixara a capital para aperfeiçoar a sua pesquisa e completar o seu doutorado em Botânica, no entanto, ainda não havia encontrado o seu objeto principal de estudo, algo que ele já estava ciente de que não seria fácil. A música folclórica não parava de ecoar em sua cabeça, não por causa do corpo-seco, mas porque ela estava relacionada com um tipo específico de árvore que em determinada época do ano secava, aparentando uma falsa morte. Era óbvio para ele que o ser folclórico conhecido como corpo-seco havia sido inventado por esse motivo, onde as mães precisavam criar um monstro fictício para que os seus filhos as obedecessem. Já imaginava como seriam os alertas.

 Já imaginava como seriam os alertas

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A cidade havia transformado o ser folclórico em mascote, preenchendo o comércio com seus chaveiros, mini-esculturas de madeira, pedra-sabão e arames retorcidos — este último chamou a sua atenção, fazendo-o considerar a aquisição como lembrança — e imãs de geladeira. A cidade era minúscula, e as ruas não eram asfaltadas, transformando-as em um mar de lama sempre que chovia. Havia somente um posto médico, um colégio, uma delegacia e uma prefeitura, que mais parecia uma casa qualquer. Ao olhar pela primeira vez para o horizonte que se estendia através de um chão de terra batida, calculou que se corresse em linha reta por poucos minutos, sairia da cidade.


Havia alugado uma casa simples, perto da estradinha, e todo dia de manhã percorria a mata que cercava a cidade, estudando a vegetação e fazendo inúmeras anotações em seu tablet. Carregava uma maleta preta onde guardava os seus equipamentos mais delicados, bem como uma mochila que comportava outros utensílios menos sensíveis, além de comida e bebida. Na sua cintura, alojada no coldre de couro marrom-claro desbotado, repousava a sua Glock G25, nunca usada, mas não se sabia quando seria preciso, visto que Marcel era acostumado a viajar sozinho.






No começo da noite, como Marcel notou desde o primeiro dia, os moradores sumiam das ruas e trancavam-se em suas casas, deixando a cidade com um aspecto fantasmagórico digno dos filmes de terror que tanto gostava de assistir, mas logo percebeu que era mais fácil ver do que vivenciar. Já em casa, depois de mais um dia desperdiçado, trancou a porta e foi direto para o chuveiro. A água, apesar de gelada, o ajudava a limpar a mente tanto quanto a sujeira em sua derme e, com os olhos fechados, deixou-a varrer seu rosto e cabelo. Os seus pensamentos vagavam pelo curto prazo que tinha, pelas contas que teria que enfrentar quando voltasse para São Paulo, e... Aquela música maldita que não saía de sua cabeça. Parecia que as crianças da cidade não sabiam cantar outra coisa. Foi então que notou que a água estava com um aspecto estranho, viscoso, e a sua vazão havia diminuído, chegando a cair poucas gotas. Tentou abrir os olhos, mas estes estavam embaçados e sujos. Esticou o braço e agarrou a toalha pendurada no box. Limpou o rosto e encarou, apavorado, a mancha avermelhada no tecido branco. Afastou a toalha do rosto e viu o que temia. Seus pés estavam encharcados, as paredes respingadas e o seu corpo coberto de algo vermelho-escuro. Não queria admitir, mas parecia que estava banhado em sangue. Verificou a torneira, que também não funcionava, e correu para o quarto tentando absorver a gosma vermelha com a toalha. Ainda nervoso algo lhe chamou a atenção enquanto vestia-se. Pequenas risadas flutuavam pelo ambiente, baixinhas, como se estivessem guardadas em uma caixa, e então aquela melodia. A tal cantiga bizarra que o deixava em nervos. Decidiu apagar as luzes e olhar pela pequena abertura da janela veneziana disposta atrás da cabeceira da cama, decisão que mensurou ser a mais sensata. Apesar da visão limitada, notou quatro crianças brincando de pular corda perto de sua janela. Suas roupas eram brancas e esvoaçantes, o que provocava arrepios em Marcel ao imaginar pequenos fantasmas brincando no seu quintal. Resolveu que assustá-las seria mais prudente.

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