Dia 1

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Não era um dia bom. Eu acordei tarde, tomei café da manhã na hora do almoço, perdi a hora de ir trabalhar e levei esporro do meu chefe. Nada podia piorar. E foi, justamente por esse pensamento estúpido e presunçoso, que meu dia piorou. Lei de Murphy, como minha avó diria. Aquela mulher supersticiosa e marrenta criada no interior de Minas Gerais. Faz tempo que não vou visita-la e não me sinto bem por isso. Mas como eu poderia ir vê-la? Meus dias têm sido cada vez mais corridos e péssimos. Não tenho tempo para nada.

Eu cheguei em casa tarde, pois fiquei tempo demais revisando umas planilhas que o chefe mandou como castigo por meu atraso. Odeio esse empego e não tenho como sair dele. Quero realizar meus sonhos. Sair dessa cidade, talvez ir a um lugar mais calmo, quem sabe até mudar de país... Tudo é tão incerto. E para completar eu manchei minha camisa social favorita. Foi uma das primeiras roupas que eu comprei com meu próprio dinheiro e agora está manchada de café bem na barriga. Se a mancha não sair terei de jogar fora.

Tomei um banho quente e bem longo, tentando inutilmente expurgar todos esses sentimentos ruins de fracasso, angústia e solidão, mas só serviu para me deixar pior ainda. Existem pessoas com problemas reais por aí nesse mundo e eu reclamando que não tenho realização profissional e manchei minha roupa com café. Existem pessoas que nem tem roupa!

Eu odeio esses pensamentos. Ficam dando voltas na minha cabeça como abutres nojentos, prontos para devorar a minha sanidade. Tive um dia de bosta igual a outros dias de bosta que vieram e virão. Nada novo sobre o sol. Não deve ser saudável ficar remoendo minha miséria assim.

Não, definitivamente não é saudável.

Vesti uma roupa confortável como pijama e me joguei no sofá em desgosto e cansaço. Liguei o jornal. Cada vez mais e mais notícias de morte e destruição, sem parar. Isso sempre me faz questionar quando o caos se instalou no mundo, até que finalmente percebo que ele sempre esteve aqui. Uma mulher negra foi vítima de balas perdidas enquanto carregava as compras pela calçada. Dois travestis foram espancados em uma balada e um deles saiu morto, um policial foi brutalmente assassinado por algum traficante. Mais enchentes assolam Curitiba... Sempre foi assim. E quando tudo isso vai acabar? Acho que quando os homens não andarem mais nesta terra nefasta.

Mudei o canal e deixei rodando um filme de suspense dos anos noventa. Não fazia ideia de qual era, mas parecia bom e preenchia o silêncio desagradável do meu apartamento. Fiquei em dúvida entre pedir comida, cozinhar ou comer miojo. Não comer nada e ir dormir também era uma opção, mas ainda eram oito horas da noite, então decidi ir cozinhar um frango com arroz e feijão para tentar preencher esse vazio que me persegue.

Às vezes eu sinto como se eu não existisse. Como se minha vida fosse entrecortada por cenas aleatórias e conflituosas da minha própria existência. É estranhamente desconfortável. Mas não dura muito. É mais uma sensação do que um sentimento. Breve, porém constante. Como uma brisa suave que levanta folhas na calçada no outono.

Me distraí e o arroz queimou. Ao menos o frango e o feijão ainda estão comestíveis.

Eu espero...

Voltei ao filme com a garganta doendo em pigarros irritantes. Estou sentindo esse desconforto desde cedo. Talvez um nimesulida resolva. Comecei a pesquisar meios de se livrar de uma dor de garganta no Google e mal percebi que o filme acabara e começara a passar "O Clube dos Cinco". Um bom filme, mas não estou com ânimo. Preciso de algo que me faça sentir que estou realmente aqui, algo que me tire o ar dos pulmões e as palavras da boca. Algo que me faça chorar e rir e gritar pelos mesmos sentimentos. Acho que um filme Cult dos anos noventa não vá fazer isso por mim, por melhor que seja.

A última vez que tive tanta intensidade assim na minha cabeça foi quando me apaixonei. Porém, assim como foi intensamente bom, foi intensamente ruim. Sou uma pessoa quebrada pelo amor e isso soa tão dramaticamente clichê que eu quero bater minha cabeça na parede. Filmes de terror e livros de romance policial são um ótimo substituto para a paixão. Te deixam aflitos e angustiados e felizes (se o final não for trágico) e dão bem menos trabalho do que se apaixonar. Sinto falta dos meus livros, não da paixão. Não pude trazê-los desde que me mudei.

Eu lia muitas tragédias. Talvez isso tenha moldado essa personalidade vazia e miserável que me persegue. Por vezes me perguntava o que fazia alguém se interessar por carnificina e crimes hediondos achados em livros e filmes. A resposta é simples, ao menos para mim: a adrenalina de ler algo que você não viveu (e provavelmente nunca viverá) é maior do que qualquer medo e aflição achados no caminho. Céus, eu não leio nada há tempos...

Quando me dei por mim o filme já havia acabado e eu precisava ir dormir, por que, mesmo que seja sexta feira, eu ainda tenho responsabilidades aos sábados que, sim, envolvem álcool, distribuir currículos, mais álcool, trazer o resto das minhas coisas que ficaram na casa da minha mãe, beber água, enviar e-mails que deveriam ter sido enviados ontem e maratonar alguma série antes de cair na melancolia insana do domingo (não necessariamente nessa ordem).

Ao deitar a cabeça no travesseiro recém-comprado, encarei meu guarda-roupa. Comprei tantas coisas para me mudar. Quando eu tinha uns dez anos, meu pai dizia que me ajudaria com toda a mudança quando eu saísse de casa. Ele sonhava um futuro brilhante para mim, dizia que eu seria... Brilhante, como as estrelas velhas que viram poeira no espaço. Meu velho gostava de brincar de poesia as vezes e ele quase nunca fazia sentido. Mas ele morreu quando eu tinha quinze anos. Foi... Horrível. Acidente de carro, uma moto o fechou na estrada e, para não matar o motoqueiro atropelado, ele virou o volante, perdeu o controle e bateu contra um poste de luz. Seu corpo atravessou o volante, pelo o que eu me lembro de ouvir. Afinal...

O caixão teve que ser fechado.

Eu estava no meio do cursinho pré-vestibular, na aula de sociologia, quando tudo aconteceu. Estava quase dormindo. Ele estava indo me buscar e... Simplesmente não chegou. Eu nem tive a chance de me despedir.

De certa maneira estranha, eu não me lembro muito do dia. As memórias vêm embaçadas à minha mente, como se tivessem sido contadas a mim e não vividas por mim. Sei que chorei por dias, sem fazer barulho para minha mãe não ouvir. Deve ter sido difícil para ela também. Meu pai era o amor da vida dela. Aquela história clássica de "feitos um para o outro". Era assim que ela descrevia, tanto que, até hoje, vive sozinha na mesma casa e as coisas dele ainda estão lá, intactas... Não sei se isso faz bem, mas é o jeito dela de lidar com o luto, talvez.

Ele teria odiado esse guarda-roupa. Era um velho marrento, igual a mãe dele, a mineira supersticiosa. As coisas sempre tinham que ser do jeito dele, na hora que ele queria. E esse guarda-roupa... Já sei o que meu pai teria dito: "Vai comprar essa coisa gigante por quê? Você não tem coisas suficientes para colocar aí dentro. E daí que tá barato? Vai só gastar espaço...". E quer saber? Ele estaria certo. Essa merda é enorme...

O sono veio mais rápido do que eu esperava. Ao menos consegui dormir. Geralmente não consigo dormir direito. Fico revirando na cama, revirando minha perdição. Tem tantas coisas que eu gostaria de fazer na vida, mas é como se estivesse sempre na mesma página, no mesmo capítulo idiota, sem conseguir sair. Quando vou realmente começar a viver a minha vida?

O Que Me Resta É AcabarOnde histórias criam vida. Descubra agora