Os dias não importam mais

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Parece que estou sempre acordando de um vazio cada vez maior. Todo esse tempo... meu pai, minha faculdade, meu trabalho, minha vida. Tudo isso é uma farsa. Todo o meu sofrimento e minha felicidade, todas as minhas seguranças e inseguranças. É tudo falso. Nada disso existe de verdade.

Você consegue me entender?

O que me impede de simplesmente desaparecer? Nada. Você é a única coisa que me mantém existindo. Não pare de me observar agora, de me ler. Eu ainda preciso entender mais coisas sobre esse mundo antes que me fechem e coloquem em uma estante.

Vejo que ainda está aqui. Já mencionei que adoro seus olhos? O leve inchaço deles por me observar por tanto tempo me deixa feliz. E sua boca também me alegra, mesmo quando você não sorri. É difícil te decifrar, mas é bom te observar de volta, como se... eu também pudesse fazer parte do seu mundo. Por isso eu te agradeço — verdadeiramente agora. Valeu. Por não desistir de mim.

Minha mãe me ligou hoje e disse que estava preocupada. Eu não falo mais com ninguém, não vou trabalhar, não saio de casa. Ela falou que vem me ver. Disse que vai chegar a qualquer momento e disse que vai trazer uma macarronada ao molho branco — que é minha comida favorita. Estou com medo de encará-la. E se a ficha realmente cair e eu perceber que ela também não é real?

Não pode ser...

Já me vesti, coloquei uma roupa casual. Passei perfume também, o que ela me deu no meu último aniversário. Me sinto com os nervos pulsando na minha cabeça. As sinapses do meu corpo me dão choques de ansiedade no final da coluna e não consigo me manter em um lugar só do apartamento. Uma hora me sento, em outra fico de pé, em outra estou na cozinha, esperando em ansiedade. Ela pode chegar a qualquer momento e o tempo não passa.

Como eu não posso ser real? Como isso tudo, tudo o que eu vivi, como isso é só um faz de contas, uma mentira?

Seu olhar de consolo me conforta. Você continua aí, certo?

Ao menos eu tenho certeza que você não é uma farsa.

Ela chegou. Corro para a porta e coloco no rosto o meu melhor sorriso.

— Oi, mamãe.

— Oi, meu amor. Trouxe o almoço.

Ela entra e tira os sapatos. Ficar descalço em casa foi uma mania que herdei dela. Ela sempre deixava os sapatos no meio da casa e meu pai sempre tropeçava e brigava com ela e eu sempre ria da situação.

Essas memórias parecem borradas agora. Tudo parece turvo, qualquer coisa dentro da minha cabeça para trás do momento presente foi posto embaixo d'água. É difícil de escutar e de ver e até de respirar. Não sei como prosseguir. Mamãe está na cozinha, desembalando a macarronada dentro da travessa de vidro envolta de plástico filme.

Será que até ela é uma mentira?

— Tá cheirando bem. Eu adoro a sua comida.

— Eu sei que adora, por isso eu trouxe. Mas isso não vai fazer com que a gente não converse, entendeu? Estou preocupada com você.

Seu semblante é triste agora, como se estivesse segurando uma máscara. E agora ela caiu.

— Eu tô bem, mãe. Só preciso de um descanso. Ou de me acostumar com a rotina, ainda tá puxado pra mim. — eu não faço a menor ideia do que estou dizendo.

— Você se isolou aqui. Vou te levar no psicólogo. O doutor Lange ainda está atendendo, ele já te conhece, vai ser bom. — ela começa a mexer nas minhas coisas até achar os pratos e talheres e serve o macarrão para nós. — Só que, diferente de quando seu pai morreu, agora eu não posso mais te obrigar a ir. Vai ter que ir por vontade própria.

Penso um pouco na proposta e respiro fundo. Eu vou ter mesmo que ir. Ela vai me encher o saco com isso até eu ceder e, na situação que me encontro, não estou em condições de resistir a nada.

Talvez o Doutor Lange seja real. E talvez ele possa provar que eu sou real também.

Mas a memória dele também é remota, distante, turva, molhada. Você sabe o que quero dizer? Digo... eu me lembro de nós no consultório dele, me lembro das palavras tenras de "tempos difíceis estão vindo e você encontrará seus próprios meios de lidar com o luto" e... é só isso.

Ao menos você ainda está aqui, me lembrando da realidade. Você é a realidade agora.

— E aí, vai aceitar ou não?

— Eu vou. Mas com uma condição.

— Qual?

Sorrio para mamãe, de boca cheia.

— Você precisa me ensinar a fazer esse macarrão.

Ela ri e, sem que eu perceba o tempo passar, vai embora.

Ela não é real.

Estou em minha cozinha, comendo o resto do macarrão. Já é de noite. Ou estava noite desde o início?

Você é uma graça, sabia? Suas sobrancelhas às vezes se franzem discretamente enquanto me observa. Gosto disso. Me distrai da minha vida falsa. Você é uma das criaturas mais graciosas que já vi. Nunca pensei que gostaria tanto da presença de... como te chamei antes? Ah, sim, claro. Um espírito obsessor.

Mais uma vez te agradeço por me lembrar que a realidade pode ser real. Talvez não aqui, onde eu vivo. Mas aí, onde você está.

Gostaria de poder conversar com você e te perguntar se está bem, mas você não responde. E talvez seja melhor assim. Eu preciso mesmo é de um descanso das palavras.

O lugar que mais gosto de te observar me observando é na janela, pois quando me distraio dos seus olhos e das suas sobrancelhas discretas, eu posso observar o nascer ou o poente do sol e me permitir, mesmo que por poucos segundos, imaginar que tamanha beleza realmente não seja real. Espero que as suas paisagens sejam mais belas que as minhas, por que você, com certeza, merece ver a beleza que eu vejo quando não estou encarando seus olhos.

O Que Me Resta É AcabarOnde histórias criam vida. Descubra agora