Dia 3? (ou qualquer dia)

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Hoje já é sexta de novo. Não me lembro do resto da semana, não faço ideia de que sexta feira é essa. É como se... eu tivesse dormido todo esse tempo até hoje. Quando finalmente retomo a consciência de minha existência, a angústia de sempre envolve minha garganta e eu tenho que me levantar e tomar um grande gole de água gelada para afastá-la da minha respiração, mas logo volto para a cama.

Por que não me lembro? O que está acontecendo comigo? Que...

Que merda.

Odeio esse sentimento. De não saber das coisas. Sempre tirei notas altas na escola, não faz sentido não conseguir entender mais nem a minha vida. As duas coisas estão relacionadas? Eu era tão inteligente quanto acho?

Acho...

Já é sexta feira, eu devia ir trabalhar, mas não quero me levantar. É como se algo me prendesse nessa cama quentinha e pequena.

Olho para o guarda-roupa enorme que meu pai teria odiado e fico encarando sua porta. Algo me incomoda. É como se... estivessem me observando. Mas, ao mesmo tempo, essa é só uma pessoa e essa pessoa me olha de todos os lados e ângulos. O terror de pensar nisso como realmente uma possibilidade plausível me dá ânsia. Para afastar essa angústia, resolvo me levantar novamente e ir tomar um banho demorado.

O que está acontecendo comigo...?

A água que envolve meu corpo é quente, quente demais, tão quente que queima minha pele, mas eu não me importo. Por que não consigo me lembrar o que fiz ontem? E semana passada? Encosto minha cabeça no azulejo branco do banheiro com tanta força que sinto a vibração recobrir todo o meu crânio até a nuca.

— Merda, merda...

O banho acaba e eu me visto de qualquer jeito. Percebo logo que estou no automático, de repente já estou na empresa, teclando e trabalhando loucamente. Onde eu estava mesmo...? No que estava pensando...?

— Ei, vai almoçar agora? Pode trazer um café para mim? — Diana pergunta. Ela é minha colega de trabalho e...

Isso já aconteceu antes. Não sei quando, mas já aconteceu.

Ela nem me dá a oportunidade de responder, apenas sorri e sai para qualquer lugar. Eu deveria ir almoçar agora, mas não tenho vontade de comer. Ao invés disso, levanto minha cabeça e passo a observar as pessoas ao meu redor. É como se eu conhecesse todas elas, mesmo mal reconhecendo seus rostos. Elas passam pela minha mesa, sorriem, me cumprimentam, mas não passa disso.

É como se não fossem... reais.

Ah, não.

Será que é isso?

Olho para trás instintivamente, como se o olhar que têm me observado estivesse queimando em minha nuca. Quem quer que seja esse espírito obsessor, já está me dando nos nervos. Não aguento mais toda essa perseguição que parece existir apenas na minha cabeça. Me levanto de súbito, encarando apenas o chão e meus pés. Meus pés que passam um ao lado do outro, em direção ao elevador.

Dentro do cubículo de metal que me causa claustrofobia, há duas pessoas, um homem e uma mulher. Eles me encaram, sorriem cordialmente, ficam parados esperando seu andar chegar. Estamos subindo, mas eu preciso descer. Uma tensão fora do normal me consome. Não consigo respirar direito.

Eles não são reais.

Eu não sou real... (?)

Entro no meu carro, corro para casa. Assim que entro, tiro os sapatos e toda a minha roupa. Corro para o banheiro e lavo meu rosto na água gelada. Não consigo sentir a ponta dos meus dedos, é como se fosse enfartar. Encaro meu reflexo no espelho e isso só aumenta meu desespero. Não consigo ver meu reflexo, para onde foi meu reflexo? Onde eu estou?

Ao invés de mim vejo outra pessoa — que sei que não sou eu — que me encara. É a pessoa que vem me encarando ultimamente. Me olha como se me lesse dos pés a cabeça. Essa pessoa não diz nada, fica apenas me olhando e olhando e olhando e...

Sem pensar eu quebro o espelho. Isso me assusta. Não me ver no espelho me assusta. Ver outra pessoa no meu lugar me assusta. Novamente o questionamento de "o que está acontecendo?" retorna à minha cabeça e tenho vontade de vomitar. Minha mão está pingando sangue na porcelana branca da pia do banheiro e no porcelanato novinho do piso. Estranhamente a dor não é tão grande como eu imaginava.

Corro para a cozinha e pego o pano de prato mais limpo que tenho para estancar o sangramento. Não cortei tão fundo, está tudo bem.

Está... tudo... bem...

O Que Me Resta É AcabarOnde histórias criam vida. Descubra agora