— Venha até mim, Angelina – ele chamou, estendendo sua mão e a oferecendo a mim.
— Mas não há música – exclamei baixinho.
— Deixe que as estrelas cantem para nós.
E elas cataram. Cada uma delas, espalhadas por todo o lugar, brilhando como uma fonte de luz ilimitada cantavam para nós. Era doce, leve... familiar. Como uma canção de ninar distante, uma música que há muito tempo eu não havia ouvido.
Devagar, pus um pé de cada vez no chão. Não estava mais frio, como antes, por conta da noite. A temperatura era agradável, fresca o suficiente para refrescar nossos corpo depois do que fizemos.
Depois daquilo, senti minha mente se dobrar e dobrar e dobrar como uma folha de papel e senti toda aquela aflição e agitar ir para longe. Eu me desesperei, por um momento, pelo vazio que ficou dentro do meu tempo. Sem os pensamentos confusos, a dor da minha cicatriz e o medo constante que eu tentava camuflar com alguma arrogância ou obediência... o que restava de mim? O que eu faria? Ao que me apegaria ou acreditaria agora?
Eu mesma já me sentia mais leve. Minha alma se tornou um mar calmo e infinito, que eu poderia mergulhar fundo e só acharia a quietude.
Eu sabia, no entanto, que era temporário. Acordaria quebrava e remendada no dia seguinte. Mas provar o sabor de ter controle pelo que penso ou ter a clareza de fazer simplesmente o que eu quisesse fazer, estava deixando um rastro fundo em mim, como na minha cicatriz.
Conseguiria me apegar a isso? Escolheria voltar a ser aquela Angelina que se contorcia sozinha no seu quarto por conta da ridícula cicatriz ou iria ser a Angelina que tinha controle sobre tudo quando dançava entre as estrelas? Qual delas eu poderia seguir? Qual delas eu queria seguir?
Toquei seus dedos, entrelaçamos nossas mãos. Podia recordar daquele dia que ele falou, quando tentou me levar para fora do castelo, apreciar as estrelas explosivas. E agora que eu estava no meio delas. Eu podia me tornar uma delas?
— Venha aqui – ele sussurrou ao meu lado.
Foi natural a maneira que nossos corpos se posicionaram um de frente para o outro. Foi natural a maneira em que minhas mãos tocaram seus ombros e como suas mãos deslizaram por minhas costas até a base da minha coluna. Foi natural a maneira em que eu descansei a cabeça em seu peito, ouvindo o bater de seu coração. Foi ainda mais natural a forma que eu sorri ao fechar os olhos e sentir, por debaixo das minhas pálpebras, o pulsar das estrelas ao nosso redor, se ascendendo e apagando.
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Não vi o dia amanhecer. Senti apenas os raios solares tocarem aquecerem minha pele quando acordei. Respirei fundo, inalando o doce aroma da grama verde, ainda de olhos fechados. Sorri quando ouvi com mais clareza o cantar matutino dos pássaros. Perguntei, ainda sonolenta, se Kyle também podia sentir sob sua pele o ar fresco da manhã. Ele respondeu que sim. Havia quebrado todas as janelas do castelo.
Nosso desjejum foi repleto de conversas fúteis. Eu afastei, pelo menos no início, questões sobre a noite anterior. As estrelas e sua conversa maluca – veja só, eu finalmente achando algo mais maluco do que eu – não tinham nada a ver com remédio ou medicações. Estava fora de cogitação alguma alucinação por um erro médico. Afinal, ele não era médico de verdade, eu começava a pensar.
Ele podia ser um feiticeiro ou bruxo que resolveu vir me ajudar. Uma pessoa de uma terra distante, sem sombra de dúvidas. Ninguém em meu reino possuía um poder como aquele. Eu não deixaria alguém assim passar despercebido antes.
Kyle penteou meu cabelo depois do banho. Eu não senti tanto medo como da primeira vez, apesar de minhas mãos continuarem soando bastante. Dessa vez, eu mantive meus olhos presos ao dele pelo espelho, como se eu esperasse uma explicação mágica deslizar dos seus lábios sem eu ao menos perguntar.
— Apesar de suas roupas serem um tanto indignas de você, acho que isso poderia alegra-la – ele disse, prendendo uma fita preta em meu cabelo.
Passei os dias seguintes seguindo-o por onde ele ia, com uma desculpa esfarrapada de que já que o castelo estava vazio, ele deveria me servir. Ambos rimos dos meu comentário, sabendo a mentira por trás dele. Não queria perder a oportunidade de vê-lo trazer a vida aquelas estrelas novamente.
Não me deixava perguntar sobre seu recente poder. Todo vez que eu me preparava para interroga-lo, as palavras morriam em minha boca e minha cicatriz voltava a pulsa. Eu bufava, em pura raiva, mas minhas dúvidas não iriam embora.
Certo dia, ele me chamou ao seu consultório. Pediu que eu ficasse sentada na cama enquanto assinava alguns papéis.
— Odeio canetas – suspirou – Prefiro as boas e velhas penas.
Mesmo havendo apenas nós dois no castelo, Kyle tinha o estranho costume de fechar as portas quando passávamos por elas. Além disso, ele havia deixado de lado o seu jaleco e óculos. Vestia apenas camisas limpas, pretas em sua grande maioria.
— Tenho que mandar seu último relatório ainda hoje – esclareceu ele.
Quando arqueei uma sobrancelha, ele se apressou:
— Antes do baile. Você sabe, seus níveis de açúcar podem aumentar após a festa.
Revirei os olhos.
Ele se aproximou de mim com o termômetro.
— Daquele mesmo jeito de antes. Você tem que abrir as pernas primeiras e depois a sua boca.
O obedeci. Ele se encaixou entre minhas pernas, mais próximo do que das outras vezes. Senti meus pescoço pinicar, memórias vindo à tona.
— Não use a língua quando eu o inserir em você. E não se esqueça de ficar parada.
O aparelho descansou em minha boca. Ele se virou para terminar de anotar alguma coisa até o aparelho apitar.
— Hum, você está sempre quente – sussurrou, me dando um olhar malicioso.
— Ele morreu.
Kyle olhou para mim.
— O que disse?
— Ele morreu – repeti mais firmemente – Meu pai morreu.
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𝐍𝐨𝐢𝐭𝐞 𝐄𝐬𝐭𝐫𝐞𝐥𝐚𝐝𝐚 - 𝐋𝐢𝐯𝐫𝐨 𝐔𝐦
Fantasy[ LIVRO UM COMPLETO] Trancafiada, Angelina passa os dias de sua vida sedada, alheia ao mundo a sua volta. Acredita fielmente que os pensamentos perigosos que a assombra devem ser evitados e mantidos longe para cumprir seu dever como princesa. Mas se...