As imagens dos objetos foram tomando forma lentamente depois que abriu os olhos. Percebeu que estava em seu quarto, o que lhe deu uma sensação de alívio. Pandora acordou perdida no tempo depois de um sono profundo que a deixou sem noção de em que dia estava. Então ela levantou da cama e foi buscar seu celular. A comum condição precária de organização de seu quarto dificultou a busca, mas ela achou o aparelho enrolado ao lençol cinza que usou aquela noite.
Passava das quatro horas da manhã naquele momento. Pandora notou que, caso retomasse o sono, seria muito doloroso e difícil despertar no horário da escola, por isso decidiu manter-se acordada. Desceu as escadas e foi até a cozinha para preparar um café. Viu diversas caixas lacradas de produtos de beleza espalhadas pela sala. No caminho, logo depois da sala, ficava o quarto da sua mãe. Pandora apenas empurrou a porta já aberta e observou aquele corpo vestido em um pijama amarelo com pequenas bolas brancas deitado de bruços, emitindo um ronco denso e cadenciado, o que lhe arrancou um leve sorriso.
De volta ao quarto, colocou a garrafa térmica no chão e, com a caneca azul de ferro na mão direita, acomodou-se sentada com as costas apoiada no travesseiro na cabeceira da cama. Não precisou levanta-se para resgatar o notebook no chão, colocou-o sobre as pernas e começou o seu ritual de leitura. Pandora tinha o costume de ler jornais. Despertou esse hobby com seu tio, irmão de sua mãe, que na classificação geral da família tinha o rótulo de "vagabundo boêmio". Há poucos meses, conviveu com o tio, refugiado na casa da irmã, no tempo que recebeu ameaça de morte por parte de um marido cuja esposa era constantemente visitada por ele, em uma fase em que trabalhou como auxiliar de "São Cornélius".
O tio de Pandora era uma figura bastante apegada à família e seu nível de simpatia, bom humor e cordialidade era diretamente proporcional à quantidade de problema que se envolvia no âmbito da vida amorosa e profissional. Todos os dias de manhã, ele preparava um café da manhã generoso, com uma modesta, porém organizada, parte de frios, pastas, pães e bolos. Com a mesa pronta, ele acordava pessoalmente Pandora com um beijo na cabeça e carinho nas costas, de forma delicada, mas logo em seguida a arrancava da cama e a carregava nas costas até cozinha. Embora nunca tenha pesado o equivalente a um saco de cimento, sobre o corpo magro e franzino do tio Pandora tornava o trajeto até o café uma aventura que começava com o mau humor da sonolência e aos poucos dava lugar às gargalhadas. A energia do tio contagiava até mesmo a mãe de Pandora, que também era conduzida coercitivamente à mesa.
A contragosto ele revelava histórias que da mãe de Pandora, que dizia se envergonhar, mas que a risada mostrava certo prazer nostálgico nas lembranças. Passavam um tempo ali, rindo das histórias do passado, mas não demorava e ela retornava para o quarto. Sozinho com Pandora na mesa do café ele era interessado na vida da sobrinha, perguntava sobre planos de vida e se colocava à disposição para ajudar no que fosse preciso. Prometia além do que poderia cumprir, porém, Pandora apreciava a intenção. Depois de comer, ele dividia com ela os quatro jornais diferentes que comprava todos os dias, e delegava a tarefa de cada um escolher o que tinha de interessante em cada jornal. Depois de selecionadas as reportagens eles se revezavam em leituras. Debatiam abertamente as questões de economia e futebol que o tio normalmente escolhia, assim como as matérias sobre música e estilo que Pandora escolhia.
Marcada pelo costumo do tio, todos os dias Pandora abre sempre quatro abas em seu navegador de internet, uma para cada jornal, seleciona e lê as matérias que achar mais interessante. Começou pela reportagem com dicas sobre as melhores formas de usar o efeito esfumaçado e o delineador, passou pelas condições da vitória do botafogo no último jogo da Copa Libertadores da América, leu sobre os novos ícones nacionais do samba de raiz e terminou com a análise sobre os avanços da extrema direita sobre os países centrais e periféricos.
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PANDORA
Художественная прозаA inocência é a arte de viver saudável quando o mundo fora dos nossos olhos começa a ganhar forma real dentro da nossa cabeça. Em um determinado momento da vida, Pandora desperta, lúcida, no seu cotidiano, no subúrbio do Rio de Janeiro. A jovem é o...