Deserto

23 3 6
                                    

A mosca pousa. O zunido e as patas roçando dentro de sua orelha. Volta de uma vez com o incômodo. Está dentro d'água, a pele enrugada, as unhas moles.

Gostaria de entender como está ali, viva. Deveria estar morta, certamente. O sol está à pino, muitas horas se passaram desde que afundou no rio. No entanto, está ali, viva e com os dedos enrugados pela pele exageradamente hidratada.

Se levanta, afundando os pés no fino lodo da margem rasa. As peles que cobrem seu corpo estão encharcadas e pesadas. Nada em sua vida é leve. Observa o tempo, o céu limpo e claro, sem nuvens. O dia exala um calor que não combina com seu estado de espírito.

A água do rio desce em seu fluxo infindável. Os olhos de Yi'v percorrem o caminho rio acima. Ou a corrente está invertida, ou ela está do outro lado, na margem oposta. A paisagem é um tanto diferente, exceto pela cordilheira ao norte, de onde a Deusa envia toda aquela água sagrada.

Uma rápida inspeção para constatar que há muitas espigas em seu entorno, o bastante para sobreviver. Ainda que não haja ninguém para ajudar e nenhum utensílio para amolecer os grãos, a mulher conclui que conseguirá se sustentar alimentada, mesmo que nada disso faça algum sentido.

"Por que estou viva?" — o pensamento acompanha cada respiração. — "Meus filhos se foram e meu homem não é mais meu Had'm". Entende que seu destino é apenas esperar por uma morte que ainda não chega. Decide seguir em direção ao nascente, rumo ao desconhecido, longe o quanto possível deste rio, mormente das lembranças sádicas que estas águas trazem.

Observa a planície vicejante ao seu lado. O mato rasteiro cobre tudo, até onde seus olhos conseguem ver. Dá um passo, amassando e deitando um maço de relva. E outro, e outro. Sua trilha se estende por centenas de metros. Sem olhar para trás, sem rumo e sem esperanças.

A areia molhada pesa em seus braços. Niue está magro, cansado, porém, segue em seu esforço repetitivo. Os dias passam, um após o outro, sem descanso. Desde que Had'm ordenou que os escravos separassem as areias das margens do grande rio em busca dos pequenos flocos prateados, esta tem sido sua derradeira tarefa.

Pensa na esposa e nos filhos, todos dependem do pai agora. O tempo todo, a cada refeição, apenas os homens que trouxerem os cascalhos metálicos recebem sua cota de ração. Niue, assim como quase todos os outros, conseguem o suficiente apenas para se manterem vivos.

Muitos definharam e pereceram ao longo dos últimos sóis. O frio se foi, definitivamente. O tempo que passam na água alivia um pouco o calor inclemente, contudo, as marcas estão presentes em suas peles descamadas e nas feridas abertas pelas frieiras.

Niue chega ao posto de coleta. Traz míseras lascas do valioso metal. Não sabe qual o fim para aquilo tudo, sabe apenas que são levados para uma grande barraca, longe das margens, ao lado da tenda de Had'm. O que se faz com o minério, no barracão é um mistério, assim como tudo o que ocorre na tenda de seu odioso líder.

Desde que seus ovos vieram ao mundo, jamais foram vistos por nenhum dos homens, escravos ou não. Estão encerrados perpetuamente na tenda do pai, é o que se sabe. E Had'm passa cada dia mais e mais tempo lá dentro, saindo apenas para conferir o resultado dos esforços dos escravos.

As mulheres continuam com o trabalho de colheita. Ainda há bastante para colher, porém, as espigas estão mirrando e o tempo que cada um dos escravos passa envolvido com o trabalho é maior para resultados cada vez menores.

Niue encerra seu expediente, retorna para sua pequena tenda com alguns grãos. A esposa reparte para que todos possam comer enquanto reserva uma pequena porção para ferver e deixar fermentando em um pote de barro. Suas expectativas são de produzir alguns goles de remédio. A fermentação cria uma bebida de sabor amargo e terroso, porém, ajuda a combater doenças e serve para os dias em que não tem disposição suficiente para aguentar a longa jornada.

EVEOnde histórias criam vida. Descubra agora