Velho

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A barba negra, fechada em tranças intrincadas, emolduram o rosto do imperador. O quarto, colorido pela difusa luz alaranjada da tarde, invade seu corpo com uma preguiça lânguida. O homem alto, de pele morena, se senta ao lado de Ushar no leito de convalescença.

— Vim ver como está sua recuperação. — Malkunor comenta com os olhos negros evitando contato com o coto na extremidade da perna do rapaz.

— Estou me sentindo bem. — o jovem exprime com um sorriso triste. — Ainda sinto muita dor, mas fora isso, estou sendo muito bem tratado.

Zua permanece no quarto, observando os dois à distância, escorada no parapeito da janela. Sente muito pelo irmão, ao mesmo tempo, em que também sente a ausência de Adapa e a loucura de seus dias, bem menos tediosos que a vida no palácio ao lado do irmão incapacitado.

O regente estala os dedos e, imediatamente entram duas aias carregando água e comida, e um artefato de madeira. O imperador se levanta, permanecendo ao lado da cama.

— Você precisa se alimentar. Somente assim poderá se recuperar definitivamente. — O homem pega o pedaço de madeira, um bloco com uma reentrância escavada. — Veja, mandei construir um apoio para que possas caminhar.

Ao observar o irmão encaixar a prótese, um tanto improvisada, Zua sorri por dentro. Seu irmão jamais será o mesmo, jamais se recuperará plenamente. Contudo, entende a abordagem do imperador. Um pouco de otimismo não fará mal algum.

Ushar come o mingau de sementes. Não parece muito apetitoso, contudo, certamente é nutritivo e saciará sua fome por várias horas, especialmente com o volume de água de ingere intercaladas entre cada colherada.

Aguarda pacientemente o término da refeição. Dispensa as aias, quando, novamente, se aproxima de Ushar.

— Sinto muito por isso... Foi um erro decretar sua punição.

Ushar apenas olha para o homem à sua frente, sente que suas palavras são sinceras e que, se pudesse voltar no tempo, não faria o mesmo mal a seu jovem corpo franzino.

O imperador passa a língua no dedão da mão esquerda e limpa a boca de Ushar removendo as marcas de mingau de seus lábios, enquanto exprime um sorriso suave.

— Você será recompensado, rapaz.

Zua, agora se apresenta de frente para o Imperador, seus olhos são assolados de uma desconfiança que não existia até aquele instante. O gesto do soberano, muito íntimo e estranho, enche seu coração de suspeitas.

O homem percebe o olhar da menina. Seus olhos desviam em todas as direções, assumindo o estranhamento que a suspeita de Zua acabara de instigar. Se vira rapidamente e segue em direção à porta. Antes de sair, porém, se volta uma última vez.

— Menina. Precisamos arranjar-lhe algo para fazer. Creio que esteja entediada aqui. Em que gosta de trabalhar?

— Sou boa em cozinhar... — a menina responde de pronto.

— Cozinha... — o homem reflete. — Nossa cozinha já é bastante bem atendida por centenas de pessoas. O que acha de voltar a ajudar o seu velho amigo Adapa? Você pode passar uma parte do dia com ele e à tarde retorna para o palácio. O que acha?

A menina parece refletir sobre a proposta por alguns segundos. Acena que sim com a cabeça quase se arrependendo por deixar o irmão a sós durante os dias.

— Excelente! — o imperador conclui. — A partir de amanhã, um dos guardas poderá acompanhá-la até a tenda do velho. Aguardará até que decida voltar, escoltando-a de volta.

A porta se fecha enquanto os irmãos podem ouvir os passos se afastando pelo corredor.

— Você ficará bem? Sem mim? — Zua pergunta sem convicção.

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