Cerimônia

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Jamais cruzará os muros da polis novamente. A decisão de Ushar foi tomada. Imaginou por um tempo que Enqui mandaria buscá-lo. Jamais aconteceu.

Vive como um cão. Um cão aleijado. Vagando pelas margens dos rios em busca de trabalho. Qualquer coisa que o permita receber alguma lambujem.

Há alguns dias arranjou um bico com um dos senhores para auxiliar na drenagem dos canais. O momento não é favorável, a safra do trigo passou, agora apenas os serviços de limpezas dos diques e barragens, e preparação do solo, os serviços mais pesados estão disponíveis.

Ainda assim, mesmo terminando seus dias exausto, consegue se alimentar e comprar a pior cerveja que o trabalho pode oferecer para os escravos.

Observa o movimento das pessoas à margem do rio, centenas de homens como ele. Todos munidos de ferramentas precárias, cavucando e removendo o lodo das bordas dos canais.

Uma mulher se aproxima da beira, um tanto afastada do ponto onde Ushar esfrega o cinzel com um movimento firme e repetitivo. O rapaz encara a moça. A moça devolve o olhar e sorri. Como todos os outros ali, é uma escrava.

Ainda assim, Ushar acredita que a jovem retribui apenas por não poder vê-lo por inteiro. Está da cintura para baixo sob as águas. Seu cotoco defeituoso não está visível. Acredita que assim que sair do rio e que a visão de sua perna decepada for oferecida, será a deixa para que mude a fisionomia de simpatia para o nojo e parta em busca de outro local para coarar os tecidos.

Desafiador, Ushar realiza exatamente este movimento. Sai da água e caminha em direção a mulher. Mantém um sorriso confiante, apesar de não possuir confiança alguma e se aproxima, disfarçando o passo manco.

Ao contrário do que imaginou, a moça permanece. não exprime nenhuma reação. Mesmo estando certo que já avistara sua deficiência, a jovem permanece encarando-o.

— Sou Ushar. — apenas essas palavras são ditas por ele.

— Sou Semíramis — apenas essas palavras são ditas por ela.

O gigante se agacha para depositar o açafate sobre os pés de Zua. O recipiente produzido por feixes de cipós trançados, com o feitio de um vaso raso, está repleto de frutas silvestres. Figos, tâmaras, uvas e damascos.

Houve outras tentativas do gigante de oferecer-lhe alimento, porém, Zua refutou-as sucessivamente. As ofertas de pequenos animais mortos, insetos e larvas não atraíram seu apetite, por fome que sentisse.

Enquanto come as frutas frescas, Zau observa a criatura com o mesmo espanto. Se parece com um homem, porém, cobertos de pelos castanhos, portadora de presas enormes e gerras afiadas afloradas das pontas de seus dedos grossos, os dedos, assim como as palmas das mãos são recobertos por uma pele grossa e escamosa com uma tonalidade amarelo vivo.

— Bom! Frutas boas. — a menina comenta.

— Mais? — a criatura estende.

Zua olha para cesta, ainda carregada, sorri. Há o bastante para dias ali.

— Obrigada. Não precisa buscar mais frutas por hora. Há o bastante para mim aqui.

O monstro se senta com as pernas cruzadas. Encara a menina com as órbitas completamente negras, exceto pelas fendas amarelas que as rasgam de cima a baixo em conformação de dois diamantes áureos.

— Menina-moça... Ao aflorar se casará com Huwawa.

— Sim... Somente quando me tornar mulher. — Zua ri da ingenuidade da fera.

Na noite em que Huwawa a capturou acreditou estar perdida. Ao encarar a face da criatura, Zua, perdeu os sentidos, exatamente como previsto nas lendas. É sabido que encarar a face de Huwawa pode levar uma pessoa a morrer instantaneamente, porém, ela apenas perdeu os sentidos.

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