CAPÍTULO 2 - A COLÔNIA
Eu nunca entendi o porquê de Mari poder ficar com o melhor lugar da casa e eu não. O porão que é aquele lugar que imaginamos sujo e obscuro, mas onde eu moro não é assim. O lugar revestido de madeira cheirava às manhãs frias de julho, nessa época costumávamos sair de casa apenas para apreciar o cheirinho de café que pairava pelo ar junto com a neblina, é meu cheiro preferido da infância. Então eu não podia evitar minha revolta por minha irmã ter aquele cheirinho só pra ela o ano inteiro, enquanto eu tenho que me conformar com o quarto do segundo andar cuja janela eu apenas consigo observar a casa do vizinho. Que injustiça!
Eu estou com onze anos no quarto do porão, apesar de não ser meu, eu costumo passar as manhãs inteiras aqui com Mari, alguns dias deitadas tirando mais um cochilo depois do café da manhã, outros lendo, mas hoje estamos apenas assistindo a um desenho animado. É sobre uma garota desastrada que acabou de descobrir alguns poderes. Infelizmente com seu despertar veio sua capacidade de arruinar cada segundo de sua vida, ela não tem escolha a não ser fingir ser normal.
O sol está batendo pela janela basculante e formando fios de luz ao lado da cama onde estamos deitadas, não é julho, mas é março e agora já começa a fazer frio demais a ponto da neblina estar se dissipando apenas agora com esses raios de sol recém-chegados. Tudo está calmo. Até que...
O barulho chega a ser ensurdecedor. Primeiro surgiu um apito extenso e de repente a única coisa que há é o som de uma bomba explodindo ecoando pela minha mente. Esse som apenas ecoa, pois não sou mais capaz de ouvir coisa alguma. Meus ouvidos doem enquanto minha mão aperta contra eles, minha única reação é me proteger. Nesse momento eu soube, não tinha como sair com vida dali. Tudo tremia como se a terra abaixo de nós estivesse desabando e isso durou mais do que uma eternidade, e só finalmente acabou quando ouvi gradualmente minha irmã gritando:
-Nell! Nell! Precisamos sair daqui! Agora!
Minhas pálpebras pareciam pedras, eu não conseguia movê-las, muito menos meu corpo. Na realidade tudo isso veio com uma sensação de êxtase, eu não sabia se eu estava necessariamente morta ou se tudo aquilo apenas não passava de um sonho ruim. Mas não era um sonho e eu só percebi isso quando minha irmã me puxou pelo braço e eu desabei no chão ao cair da cama. Instintivamente meus olhos se abriram e a cena foi assustadora. À minha frente Mari gritava meu nome sem parar, seus olhos estavam arregalados de desespero. Ao seu lado não havia mais nada, não havia o quarto aconchegante de antes. Onde ficava a televisão, a escada que dava para a cozinha, tudo era escombros. Não era mais a névoa que pairava no ar, mas sim a poeira. Meus pulmões ardiam, eu achava que tinha esquecido de respirar mas a verdade é que era outra coisa que obstruía o ar.
Estávamos presas, eu não conseguia falar e Mari estava desesperada.
-O que aconteceu, Mari? -Disse a voz assustada de uma criança de 11 anos, não. Era a minha voz, sufocada pelo pouco ar que eu conseguia respirar.
-Precisamos sair daqui Nell. Precisamos achar a mamãe, mas eu não sei como. -As lágrimas escorriam sem parar deixando rastros na sujeira impregnada em seu rosto. Olhei a nossa volta, a única luz que entrava era ainda pelo basculante. Tínhamos que passar por ele. Era a única coisa.
Eu subi pela cômoda que ficava abaixo da abertura, e graças a minha estatura um pouco maior que a das crianças da minha idade eu consegui alcançar, mas infelizmente a alavanca que a abria estava emperrada. Tínhamos que quebrar o vidro e para isso usamos um guarda chuvas que estava entre os escombros. Mari bateu na janela até que quebrasse em mil caquinhos incolores. Com a ajuda de minha irmã consegui passar entre as grades de ferro, o vidro restante rasgou minha blusa que uma vez fora rosa e perfurou minha pele, eu só senti a dor após ajudar minha irmã a sair pela mesma abertura que eu. A adrenalina havia acabado, estávamos do lado de fora agora, sentadas olhando para onde era o porão, minha cabeça latejava e quando passei minha mão em minha cabeça senti um líquido espesso e quente. Sangue.
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Chamas e Cinzas
Teen FictionNell é uma garota de 16 anos que ficou órfã após uma guerra que dizimou quase toda a humanidade. Agora ela e os poucos sobreviventes têm que viver em colônias subterrâneas. Para proteger a única pessoa que ainda tem, sua irmã que agora acabou de d...