XI

90 20 3
                                    

Foi em um dia de uma tempestade muito forte que você e Isabel estavam brigando.

Como nunca antes.

Como eu nunca pensei que poderiam um dia chegar.

Vocês não eram de brigar.

Tinham passado quatro anos de casamento sem conseguir nem sequer elevar o tom de voz um para o outro, mas desde uns dias para cá, as discussões têm se tornado mais frequentes.

O casamento parecia definhar a cada dia.

Qualquer um em meu lugar poderia sentir-se feliz por achar que seria o fim do relacionamento mas você chorava e sofria, e eu, como sempre, podia sentir cada batida mais forte de seu coração sendo ela boa ou ruim.

E eu detestava te ver daquela maneira.

Por incrível que pareça, eu não gostava das brigas.

Parecia que a casa estava desmoronando, era como se estivesse chovendo lá dentro.

Tudo se tornava ainda pior com as gotas do céu caindo impiedosamente sobre minhas pétalas e raízes.

Os trovões faziam Alícia, a pequenina bebê que foi fruto do matrimônio, chorar e berrar assustada.

Ela era graciosa.

Tinha os seus olhos.

Ela, era o único serzinho daquela casa que parecia pelo menos notar a minha presença.

Isabel gostava de levá-la para tomar ar fresco durante a tarde e mesmo que estivesse no colo dela e ainda fosse tão pequenina, ela sempre me olhava com olhos grandes e curiosos, que de certa forma, transmitiam um amor incondicional e eu não entendia o porquê de tanto amor vindo de um ser tão pequeno e inocente, mas aceitava qualquer tipo de afeto já que havia sido deixada pelos cantos.

Ela tinha ternura e pureza e isso me atraía.

Tinha vontade de um dia poder apertar suas bochechinhas fartas, mas nunca pude

Isabel não deixava a pequena ficar muito próxima de mim e tinha que me contentar com vê-la de passagem algumas vezes.

Me questiono até os dias de hoje se ela era capaz de ler meus pensamentos e saber como eu era carente de atenção e um pouco de amor porque ela, mesmo que de longe, gostava de me mostrar seu sorriso gengival e me transmitir de alguma forma algum...

Conforto.

Era como se se importasse comigo mesmo sem me conhecer de fato.

Isabel nunca estranhou a menina rindo, já que era muito risonha, estava acostumada a vê-la rir o tempo todo então nunca percebeu que todos os risos que ela dava quando estava no jardim, estavam sendo direcionados a mim.

Ela é adorável.

Deve ter herdado o amor do pai.

Te vi sair às pressas de casa, em meio a uma tempestade, sem se dar ao trabalho de levar um guarda-chuva.

Abriu o portãozinho com uma força abrupta e exagerada e saiu de casa tão furioso que eu pude escutar sua respiração pesada mesmo não estando muito perto.

Isabel apareceu na varanda onde ainda tinha um pouco de cobertura, com uma Alícia chorosa em seus braços.

Não me dei ao trabalho de perceber oque ela estava gritando e culpando você porque tudo que consegui prestar atenção foi no choro de Alícia que calou-se no instante em que me viu.

Ela balbuciou algo com uma feição que carregava certa compaixão da minha dor.

Viver já era uma dor.

Eu não sabia mais oque era ser amada.

Faça chuva ou faça sol.

Eu estava apenas lá parada e abandonada.

Verão.

Inverno.

Primavera.

Outono.

Todos os dias era a mesma coisa pela qual eu lamentava ter me adaptado.

Aquela era a minha nova realidade e teria que enfrentá-la, querendo ou não.

Naquele dia que você saiu, horas mais tarde eu soube pelo berro doloroso e pelas lamúrias desesperadas de Isabel, que você tinha sofrido um acidente na tempestade enquanto pilotava o seu dirigível.

Aquele telefonema serviu como um trem de más notícias e eu nunca vi aquela mulher tão desesperada saindo de casa.

Eu passei muitos, muitos dias sem saber oque era ver gente, quer dizer, pude contemplar a visão da sua insignificante esposa vindo alguns dias para buscar roupas limpas e mesmo que ela não precisasse me contar, eu sabia que você poderia estar em algum lugar se recuperando.

Levou cerca de uma semana e meia para que você voltasse para casa, mas desta vez tudo estava completamente diferente e eu não estava entendendo o porquê de você estar usando uma bengala.

Não era uma bengala para idosos. Ela era diferente, era maior e você não parecia usá-la como apoio, e sim como uma... Guia.

Você estava cego e disso eu já sabia porque tinha abandonado um dos seres que te amou primeiro quando nem sequer seu pai foi capaz disso, mas agora a diferença era que você estava cego em corpo.

Era horrível te assistir passar o dia inteiro sentado na mesa de chá do jardim contemplando o nada e se questionando onde tinha errado.

De muito sofrimento era pra você passar por aquilo, era compreensível.

Não podia mais ver o rosto de seus amigos, não poderia mais trabalhar com oque mais amava, de nada mais servia, era como um peso morto, como mais um filho para Isabel ter o trabalho de cuidar.

E de muita dor para mim era saber que você pensava assim, pensava em tudo, em todos, e ainda sim nem vagou sua mente sobre mim.

Me pergunto se você sequer se lembrava da minha existência.

Normal.

Deve ter se acostumado com a sua vida e deixar de me contar as coisas, foi aos poucos me excluindo da sua rotina, me excluindo da sua vida.

Eu preferia que você me cortasse e me matasse de uma vez, eu não queria ficar ali sofrendo do jeito que estava.

Você sabe o quanto dói ser rejeitada?

O quanto dói sentir que ninguém mais luta por você?

Que ninguém se importa com a sua existência?

Eu me tornei insignificante.

Agora me diga, Jeongguk, por que não me cortou ainda?

É pela promessa que fizeste a Oliver em seu leito de morte?

Por não ter coragem?

Ou por pelo puro prazer de me ver deixada de escanteio?

Você não faz ideia do quanto está doendo.

Na verdade, eu achei que você nunca iria entender, mas como sempre... Eu estava enganada.

Aquele ainda não era o fim.

RoseOnde histórias criam vida. Descubra agora