CAPÍTULO II

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Centenas de nós vivem em um aeroporto abandonado próximo a uma grande cidade. Não precisamos de abrigo ou aquecimento, isso é óbvio, mas gostamos de ficar em lugares que tenham paredes e teto. Senão, ficaríamos vagando em um lugar aberto cheio de poeira, e isso seria estranho e horrível. Não ter nada a nossa volta, nada para tocar ou olhar, nenhuma construção de nenhum tipo, apenas nós e o grande céu aberto. Imagino que isso é estar totalmente morto. Um vazio total e absoluto.

Acho que estamos aqui há muito tempo. Ainda tenho toda a minha carne, mas há outros mais antigos que são quase apenas esqueletos com alguns pedaços de músculos totalmente secos. De algum jeito eles ainda se contraem, se distendem e continuam se movendo. Ainda não vi nenhum de nós "morrer" de velhice. Talvez a gente viva para sempre, não sei. O futuro para mim é um borrão tão grande quanto o passado. Não consigo me preocupar com nada à direita ou à esquerda do presente.

Estou na escada rolante de novo quando Rosé me encontra. Brinco nelas várias vezes por dia, sempre que estão funcionando. Isso se tornou um ritual. O aeroporto está abandonado, mas às vezes a energia se liga durante um tempo, talvez vinda de algum dos geradores de emergência que dão seus suspiros lá dos subsolos mais profundos. A luz se acende, as telas piscam e as máquinas voltam a funcionar. Adoro esses momentos, é o sentimento das coisas voltando à vida. Fico parada em um degrau e subo como uma alma indo para o Paraíso, aquele sonho adocicado de nossa infância que agora se tornou uma piada sem graça.

Depois de repetir o ritual umas trinta vezes, encontro Rosé esperando por mim na parte de cima. Ela é alta de cabelos longos loiros, sua aparência foi surgindo quando a escada rolante subia. Será que ela é um anjo que me dá as boas-vindas nos portões?

Ela aponta em uma direção vaga e diz:

- Cidade

Concordo com a cabeça e a sigo.

Vamos sair para procurar comida. Uma turma de caça se forma à nossa volta enquanto rumamos em direção à cidade. Não é difícil recrutar outros para estas expedições, mesmo que ninguém esteja com fome. Ter um pensamento com foco é algo raro por aqui, por isso sempre seguimos um quando ele ocorre. Senão, ficaríamos apenas parados por aí grunhindo o dia todo. Aliás, ficamos bastante tempo parados grunhindo por aí. Passamos anos assim. A carne vai secando de nossos ossos e ficamos ali parados, esperando acontecer. Sempre me pergunto quantos anos tenho.

A cidade onde caçamos é convenientemente fechada. Chegamos por volta da hora do almoço e começamos a procurar por carne. A nova fome é uma sensação estranha. Não sentimos em nossos estômagos, alguns de nós nem têm estômago. Sentimos igualmente por todo o corpo, é uma sensação de flacidez e afundamento, como se todas as nossas células estivessem murchando. No inverno passado, quando muitos vivos se juntaram aos mortos e nossas presas começaram a ficar escassas, vi alguns de nossos amigos se tornarem mortos-mortos. A transição não foi nem um pouco dramática. Eles apenas foram ficando mais devagar, pararam e depois de um tempo percebemos que tinham virado cadáveres. Aquilo me inquietou no começo, mas é falta de educação prestar atenção quando um de nós morre.

Acho que o mundo praticamente acabou, pois as cidades nas quais vagamos estão tão podres quanto nós. Os prédios estão em ruínas e carros enferrujados que bloqueiam as ruas. Quase todos os vidros estão quebrados e o vento que sopra por eles faz o som de um animal moribundo deixado para morrer. Não sei o que aconteceu. Doença? Guerra? Colapso social? Ou apenas nós acontecemos? Os mortos substituindo os vivos? Acho que isso talvez não seja tão importante. Quando você chegar no fim do mundo, não interessa muito que caminho pegou para chegar lá.

Começamos a sentir o cheiro dos vivos assim que nos aproximamos de um prédio em ruínas. O cheiro não é aquele almíscar de suor e pele, e sim aquela efervescência da energia vital, como o cheiro forte e ionizado dos raios ou de lavanda. Não sentimos o cheiro com nossos narizes. Ele nos acerta lá no fundo, perto do cérebro, como o wasabi.

Minha Namorada é uma ZumbiOnde histórias criam vida. Descubra agora