Cá estamos como poeira. Locomoção és pensamento. Surfamos as ondas imateriais, entrando em correntezas e saindo delas. Passamos despercebidos como o ar, um micro ser, invisível às retinas e pupilas, sem cores, sem diagramação. Luz forte que emana, guia e direciona. Sente-se um calor maior que vigora ao centro do todo. Bebemos da fonte universal cintilante e genuína, criação divina, és que nos banhamos: em águas puras e amorosas, vibração maior dos inquilinos que formam esta egrégora. Irmãos e irmãs. Estamos em nona dimensão. A lei da fraternidade decidiu então, colocar pequenas partes que completam, em um pequeno globo azul, com a finalidade de: orientar a estes que vestem o manto da ignorância e permeiam em sombras. Assim é a missão do "homem" sábio. Ajudar as consciências retardatárias em seus processos, para que se equilibrem ao centro, muito além das concepções do que se acredita, sobre bem e mal.
Grandes mensageiros foram enviados, de tempos em tempos, e agora se encontram entre nós: Cristo, Dalí, Nietzsche, Gandhi, Kardec. Não esperem uma nova decida destes. Já completaram suas missões. Todas as ferramentas foram dadas a vocês: busquem através da meditação, orientação intuitiva. Se alinhem com seus propósitos e se aproximem, sem medo. Os problemas estão aí para serem enfrentados e, principalmente, degustados. Não teria outra maneira, senão, aprender errando. Aos que já sentem o chamado: a vocês, será cobrado muito mais. Os pesos da vergonha que cometem serão medidos em balança do juízo. De seus próprios juízos. Se atentem. Deixaremos o relato de um dos viajantes que agora se encontra numa camada que precede a vossa: Está sob observação, sendo cuidado.
Em gesto de gratificação a lei fraterna, e ao escritor que possibilita o acesso, deixarei então o meu relato. Que seja útil para um próximo.
Com carinho, Alexander Douglas.
Venho de um futuro não muito distante, alerta-los para que não cometam os mesmos erros que eu. Para que não falhem miseravelmente como eu falhei. Para que reflitam e estabeleçam metas. Não deixem escapar os sentimentos mais belos das suas vidas e nem as pessoas queridas. Julguei ser o centro do mundo, julguei ter atingindo os cumes gélidos da sabedoria emocional. Fui um arrogante. Tornei-me uma pedra de gelo num copo de uísque, derretendo aos poucos. Hoje, me sinto velho e vazio por não ter escutado todos os conselhos, por não ter amado de coração aberto, por não ter estudado o suficiente pra fazer uma máquina do tempo. Venho de um futuro, não muito distante. Peço que escutem com atenção:
Tive tudo nessa vida: Uma casa, um bom trabalho, mesa farta, uma família, um cachorro e uma mulher. Sinto tanta falta que me dói! É como se cada um deles fosse um pedaço de mim e, agora, ando assim, despedaçado, caminhando com meu bloco de papel e uma caneta preta que minha antiga esposa deixou como última lembrança, relutante. Esta eu não uso: Guardo. Talvez seja a sensação de que nosso amor ainda continua ali, vivo, na tinta dentro do tubo que evita escorrer o aprendizado que fica, pra que não derrame como as latas de cerveja que ela recolhia todas as manhãs, despejando o líquido restante ralo abaixo; fazendo exatamente o que fiz com o nosso amor. Pouco a pouco fui perdendo. Olho os carros que passam com adesivos de família e lembro da minha. Perdi a essência. A minha vida. Não me refiro ao dinheiro, tem coisa que é muito mais importante, como, a sanidade, e ainda assim, também a perdi. Não foi a primeira vez que recebi o alerta: "Doug, você não sabe beber! Isso vai acabar contigo, meu bem. Se torna agressivo, estupido, ciumento e louco! Pesa o ambiente quando está assim." O vazio começou quando ela resolveu sair de casa. Levou seus cremes que adornavam a pia do banheiro no primeiro mês; no segundo, suas blusas e peças íntimas; no terceiro, sua escova rosa, sua segurança, seu carinho, seu afeto; não sobrou mais nada.
Gostaria de falar sobre uma semana em particular. − Trabalhei como auxiliar de aeroporto, um contratado da Infraero. Não era o emprego dos sonhos, mas era o suficiente para deixar as contas de casa organizadas e tomar minha cerveja: dia sim, dia não. Em datas sazonais, conseguia mandar presentes para os familiares mais chegados. Tinha a sensação de que aquelas coisas podiam comprar a minha dignidade, e que esqueceriam do meu fracasso líquido. Minha mãe morava a 200km de distância de onde eu residia. Simples casa campestre. Tinha tuberculose e nos encontrávamos apenas um dia do ano; Natal. Os especialistas a deram mais 10 anos de vida, após o diagnóstico em 2020. Três dias após a ceia, dia 28 de dezembro de 2023, veio a falecer, sinto que por desgosto. Aquela era a terceira ceia que comungávamos sem bebidas. Eu havia feito uma promessa para todos que sabiam do meu problema... Nesta última, levei dentro do capote um frasco pequeno de absinto e etanol para me embebedar no banheiro. Resultado? Briguei com o meu irmão mais novo que tentou me imobilizar com o joelho amassando o meu queixo, enquanto segurava meus dois braços com as mãos. Eu ainda tinha forças na época. Solto um punho, puxei a toalha da pequena mesa de metro por metro, derrubando toda a comida e os talheres. Estávamos no chão. Peguei uma faca ponte aguda que serviria para o corte do pernil, querendo enfia-la à jugular do caçula. Apaguei. Junto a mim, aquela última lembrança de todos eles. Acordei sob a cama do hospital geral do estado, sem ninguém pra acudir, todo sacudido, com pontos na cabeça. Alessandra, minha ex-esposa, estava passando as férias com a irmã e voltaria no dia oito de janeiro do ano seguinte. Pedi a enfermeira que me emprestasse um telefone, já que o meu celular acabou quebrando no dia da briga, em minha queda. Me emprestou o aparelho pessoal e liguei para San. Talvez fosse a única que me entendesse. Minutos depois, fique sabendo da notícia: minha mãe estava morta. San também disse que não voltaria mais pra casa.
Minha alta veio no dia primeiro de janeiro. Volto a falar desta semana. − Cheguei em casa e as coisas estavam esquisitas. O silêncio e o vazio ecoavam na prateleira dos livros que eu tinha. Julguei ter deixado em ordem alfabética e por cores. Gostava de me atentar a estes pequenos detalhes. Estava tudo fora de ordem. Encontrei um bilhete em cima do buffet que guardava os pratos na sala. Nele, estava escrito: "Levei o seu cachorro. Atenciosamente, Senhora D.". Eu não fazia ideia de quem era. Deduzi que fosse da carrocinha. Liguei o computador ultrapassado que tinha para encontrar o número dos canis da região. Estava sem internet, sem água, contas atrasadas e também não achei mais a minha carteira com cartões de crédito. No bar ainda haviam garrafas de José Cuervo e Campari. Peguei meu copo favorito, sem lavar, supus que o álcool contido no liquido aniquilaria qualquer bactéria possível. A recomendação médica foi de que eu parasse com a bebida; poderia acabar desenvolvendo problemas sérios no fígado segundo a doutora. Fiz pouca questão e importância, acabei secando com as garrafas nos dias seguintes. Cheguei em casa numa segunda-feira, parei de beber na outra semana. Também não lembrei mais do cachorro.
Dia 09 de Janeiro de 2024. Terça-feira
Os tira-gostos na geladeira haviam terminado. Olhei a dispensa e só restaram extratos de tomate e um pacote de miojo. Abri e comi cru. A coisa não desceu muito bem, corri até o banheiro e botei pra fora. Notei que o assento da privada também não estava lá. Vomitei novamente. Puxei a corda da descarga, não tinha uma gota d'agua na caixa. Girei a torneira da pia colocando boca aberta abaixo. Dois pingos. Precisava urgentemente de um banho e fazer a troca dos curativos à cabeça. Olhei no espelho, que por sinal, estava todo quebrado, me apavorei ao ver a cor de minha pele em tons amarelo-esverdeados. Muito sangue no lugar dos pontos que doíam. Não me reconheci. Parecia ter envelhecido um bocado. Troquei a roupa rapidamente e corri no vizinho para perguntar em qual dia estávamos. Também queria saber de San: Tinha chegado em casa? Deixou algum recado? A rua estava esquisita, torta, enladeirada, e aquilo me causava mais náuseas além da ressaca. Os jardins estavam secos e fúnebres, sem presenças de pássaros, flores mortas. – Messias? Está em casa? É o Doug. Olá? – A porta parecia ter sido arrancada e o carro não estava na garagem. Parei um minuto para verificar em volta e, estranhamente, todas as outras residências estavam sem porta. – Estou entrando. – Persianas fechadas, televisão ligada tocando uma sinfonia dos anos 80, melancólica e triste. Penumbra evidente, ninguém atendia os meus chamados. Caminhei pelo corredor olhando os retratos da família do Messias, pendurados na parede. Alguns rostos estavam disformes e sem face. Pensei: Que bizarro! Além do mais, a passagem daquele corredor parecia muito mais extensa do que antes. Escutei um estalo de cama e chamei pelo vizinho mais uma vez. Sem retorno. Continuei a caminhada adentro. O piso estava ficando escuro, cada vez mais. Havia um tipo de musgo verde ao qual eu não estava familiarizado e também não sei de onde podia ter vindo. O aroma de morte era nítido, vindo do assoalho. Coração pulsou mais forte quando cheguei no quarto. Numa cadeira de balanço antiga, estava um senhor de cabelos grisalhos e cumpridos, sentado. – Messias o que houve? É você? – Arqueou o tronco com dificuldade, se levantou. – Não. Sou o bisavô dele. O que está fazendo aqui, em minha casa? Esta casa é minha! Não dele. Saia. Agora! – O velho caminhava lentamente em minha direção com um cachimbo na boca, pele toda enrugada, parecia ter saído de uma piscina. Em sua cabeça, vestia um quepe de marujo ou capitão, não sei ao certo. Ficou evidente que o chorume e a gosma saiam de suas botas. Pude notar ao vê-lo caminhando. Achei que estivesse ficando maluco. Messias tinha trinta e oito anos e seu bisavô ainda era vivo? Quem era aquele homem? Não quis ficar pra saber, não perguntei em detalhes. Pareceu-me sujeito de pouca prosa. O medo tomou conta de mim enquanto voltava pra entrada da casa do vizinho, quase derrapei na coisa nojenta. As fotografias começaram a cair repentinamente e o volume da TV infernalmente aumentava. Meus ouvidos pareciam querer estourar. Correndo, atravessei a rua e voltei para minha sala: Cambaleante, cabeça sangrando, zumbido forte nos tímpanos. Desmaiei sobre o tapete cinza chumbo, com muita dor, apavorado.
Dia 10 de Janeiro de 2024. Quarta-feira.
Me mudei há onze anos. Durante os oito primeiros semestres, todas as quartas-feiras, um carro de verduras passava. Acordei com o barulho que saia das caixas de som do Chevrolet 98. − Acontece que, Seu Garibaldo, o verdureiro, não fazia mais o percurso. Faleceu em 2017, de velhice, dormindo. Fui ao seu velório. − Levantei do tapete, cabeça não mais doía. Fui atraído pelo Jingle da alface cognoscível. Fui até a janela, debrucei no batente e observei. O carro era exatamente igual. Ronco do escape e cor da lataria. Percebi movimentação de crianças brincando, andando de bicicleta, risadas, pássaros, arbustos floridos, árvores foleadas; pensei: o que está havendo? Uma ruiva vestida de branco, distribuía frutas e sorrisos para a molecada. Eu ainda tinha uma grande sede por álcool, porém, a fome e vontade de tomar um banho eram prioridades. Tateei a cabeça e, de alguma forma, meu curativo havia sido substituído por um novo. Me aproximei das crianças, − apesar de nunca ter gostado − dei bom dia, não me notaram ou fingiram não ouvir. Nem a ruiva. Fiquei um tanto nervoso e comecei a tentar falar alto. Quanto mais afobado, menos a voz ressoava. Desesperado, comecei a gritar em silêncio. Minhas cordas vocais pareciam terem sido arrancadas. Matutei: "Que porra é essa? O que tá havendo comigo? To ficando maluco, não sei que dia é hoje, tenho fome, estou sujo e não reconheço mais ninguém!" Lembrei dos meus sobrinhos, logo, dos meus irmãos, da minha mãe e de San. Procurava acolhimento em lembranças e era sempre tomado, de súbito, pela vergonha do meu fracasso. Eu estava sozinho. Homem solitário e maluco. Sentei na grama, em prantos, amedrontado pelo vendaval de informações que recebia em cabeça: Vozes se fizeram presente, me chamavam. Ouvia murmúrios, lamentações, porquês, choros, angústia. Um telefone sem fio incessante. Deitei na grama pronto pra fazer alguma besteira, pensei em correr na cozinha e enfiar uma faca na jugular. Lembrei mais uma vez do meu irmão caçula; chorei novamente. Escorei minha cabeça nos braços, os pontos voltaram a sangrar, senti a dor de um alfinete fino entrando em cérebro. Meu estômago estava um caco e o fígado latente. Tinha sede; agora, de água. – Douglas? – Voz angelical sussurrou. Senti vento e hálito de jasmim nos fios do meu cabelo. – Venha, Doug. Precisamos conversar. – Tirei a cabeça do antebraço, uma mão leve apalpava o meu rosto. Era a ruiva. – Moça, obrigado. Muito obrigado! – A sua presença me acalmava e me desesperava ao mesmo tempo. Turbilhão de sentimentos. Me senti um doente. – Alexander Douglas... Respire... tenha calma. Sei o que está passando e vou te ajudar. Preciso que mantenha o fluxo respiratório e não se desespere. Tenha calma. Venha comigo. – Me olhava com um sorriso e olhar de amorosidade. Quem era? Como sabia o meu nome? Entrou no carro e abriu a porta do passageiro. Timidamente, caminhei até o veículo: respirando, me recompondo, senti alivio quando entrei. Apesar da carcaça velha do automóvel, por dentro era pura sofisticação: O painel tinha botões e marcadores que eu nunca tinha visto. Com um estalo de dedos, os vidros se fechavam e o ar-condicionado ligava. – Douglas, precisa beber isto. Sei que tem sede e sua cabeça dói. Durante o trajeto, peço que reflita as tuas posturas sobre ser-humano. Então tome. – Me entregou um frasco translúcido com um liquido rosa quartz. Em tom sublime, sem ameaça, sem imposição. Sabia que aquilo era pro meu bem. Tomei a coisa e perguntei: – Escuta, que dia é hoje? Quem é você? – Indaguei. Sorridente, respondeu: − Trabalho com resgates e hoje é quarta-feira. As coisas devem estar um tanto estranhas, não? Mas fique tranquilo, querido. Tem coisa que... nós... você... passagem... – Adormeci no banco. Entrei em estado de sono profundo. Sonhei com toda a minha vida num filme. Não participava; estava na condição de observador das cenas. Era uma espécie de recapitulação de todos os bons momentos vividos: Dia do meu batismo, primeira bicicleta, as cachoeiras que frequentei na adolescência, amigos, avós, momentos fraternos. Avancei em linha do tempo: Brigas, bebedeiras, drogas, casamento, lua de mel fracassada, emprego, cachorro, tuberculose, laços rompidos. Vazio. De repente estava em um túnel muito escuro com uma pequena luz no final. Caminhei cerca de 10 quilômetros e não conseguia alcançar aquele pequeno facho luminoso. Sentei, suado, cansado. Pique de atleta perdido há muito tempo. Boca seca. Lembrei do álcool e decidi parar com aquela merda. Eu não precisava da bebida pra ser feliz. Pelo contrário, os bons momentos que passei foram todos anteriores ao alcoolismo. Após afirmativa intuitiva, a claridade veio de encontro a mim, fortíssima e calorosa. Acordei no aeroporto em que trabalhava, de uniforme. Não havia mais carro e não vi a moça ruiva; apenas, um relógio no pulso e um celular com não mais que um botão, dentro da calça bege. No flip do aparelho, uma nota: "Entre no saguão principal, dirija-se até o guichê da companhia Mirage e procure por Felipe. Siga os sinais." Procurei mais alguma pista em meus bolsos, não havia mais nada. Duvidas de sobra...
Dia 11 de Janeiro de 2024. Quinta-Feira.
Não fazia ideia do tempo que tinha passado, mas, agora podia consultar a data no visor do telefone. O vislumbre em dormência durou cerca de vinte anos à minha concepção. Quem era aquela moça? O carro de Garibaldo? Filha dele? Bulhufas. Segui até o pátio erguido em pilastras, onde, pessoas vestidas iguais a mim faziam o check-in da tal companhia. Estava familiarizado com as empresas: Latam, Gol, Azul. Aquela em específico tinha me passado despercebido. Nem a quiçá. No telão de embarques, voos para localidades distintas. Na praça de alimentação um imenso self-service sem balança. Todos se serviam e não estavam pagando por aquilo: Sem caixa registradora, sem funcionários. O cheiro da comida estava realmente ótimo. Barriga em ronco, fui atraído. Decidi fazer um prato com tudo que tinha direito. Há quanto tempo eu não comia mesmo? Deixei minha bandeja em cima de uma das mesas, voltei ao balcão para pegar os talheres e um copo de suco de laranja na máquina. Afastei a cadeira, sentei e comi com gosto. O tempero estava maravilhoso, comida quente e saborosa, não serviam animais mortos. Terminada a refeição, notei o pessoal depositando os pratos, garfos e facas sujas numa dispensa. Ao lado dela, um pequeno visor de LED que mostrava a mensagem: "Agradeça pela comida. Esta é a maior forma de pagamento. Boa viagem." Fiz como todos. Deixei as coisas no devido local e procurei alguém pra agradecer. Fiquei sem entender. Em pensamento, agradeci ao divino. Lembrei do tempo em que minha mãe me levava na igreja e pedia para que eu agradecesse estas pequenas coisas, estes pequenos momentos da vida. "Obrigado meu Deus, pelo prato de comida. Há tanto já estava com fome. Tenho caminhado errado, tão errado, Senhor; onde vim parar? Não reconheço mais onde estou, não sei como cheguei até aqui. Quero que saiba: Entrego minha alma em tuas mãos e te peço o mais sincero perdão. Fui um miserável. Estou disposto a seguir o chamado e..." Senti alguém tocar com os dedos em meu ombro esquerdo antes de terminar o agradecimento em prece. – Oi Douglas. – Virei de fronte a voz: Um rapaz alto e esguio de dois metros de altura. Vestia uma roupa parecida com a da ruiva. Além disso, os olhares deles tinham semelhança. Ambos transmitiam naturalidade e paz. – Amanda disse que você viria. Uma delicia a comida daqui, concorda? Desculpa atrapalhar a tua prece. Vi que estava concentrado. Venha, não temos muito tempo. No caminho, posso te responder algumas coisas, tudo bem? – Me senti pequeno diante a ele. – Claro. Tudo bem. Você deve ser o Felipe, certo? Amanda deve ser a ruiva que me encaminhou até aqui. Antecipo um pedido de desculpas pelas tantas perguntas que tenho. Estou realmente confuso. Desde a minha chegada em casa, o mundo não parece mais o mesmo. Me sinto mais vivo, porém, alguns aspectos da realidade estão um tanto extraordinários. Veja: Minha rua, num dia estava morta, sem flores, sem encanto. No outro, após dormir e acordar, a forma, as casas... tudo estava diferente. Encontrei com um senhor que disse ser o bisavô do meu vizinho, o que é confuso. Amanda dirigia o carro de um falecido verdureiro que fazia entregas em meu condomínio. O veículo era exatamente igual; tirando aqueles botões no painel. Adormeci e não pude reparar com destreza. Lembro de ela ter dito que trabalhava com resgates. Ela quem cuidou da minha cabeça? Ainda sinto um pouco de dor... – Ele me escutava e sabia dar respostas. − Perfeitamente, Douglas. Muito prazer. Me chamo Felipe. Amanda e eu trabalhamos na mesma equipe. Nossos membros operam em funções distintas. Meu trabalho é o de encaminhar os viajantes para os seus destinos. Sua cabeça dói, e não é por conta da pancada que recebeu no dia da briga com seu irmão. Sua consciência ainda está pesada pelo o que aconteceu. A bebida que você tomou a caminho, vejo que, de certo modo, te ajudou a retomar a postura devida. Por mais que pareça loucura, posso escutar todos os seus pensamentos. Foi gratificante te ver em oração, agradecendo pela comida à lei da fraternidade. Assim chamamos o seu Deus. Você não está totalmente pronto Doug. É fácil recorrer a fé quando está em desespero. Esse sentimento deve ser cristalizado em todas as suas ações. Seu coração é verdadeiro, mas seu filtro da mente está sujo, poluído; ainda se deixa levar por desejos... – Estávamos chegando no embarque de uma das aeronaves no pátio. – Aqui está, um voo particular e exclusivo pra ti. Está rumo à uma ultima parada. Poderá rever a Senhora D. – Como poderia rever alguém que eu não faço ideia quem seja? E meus irmãos? E Alessandra? Onde estava o povo que me era familiar? Um voo fretado só pra mim? Continuou: − Douglas... poderá revê-los daqui a um tempo. Não agora. A senhora D. te aguarda. Seu cachorro também. – Felipe realmente podia ler os meus pensamentos. Que maluquice. Ficamos nos encarando enquanto eu subia as escadas para entrar na aeronave: Um pequeno globo iluminado com assento único em couro branco. A entrada daquilo se fechou, um gás rosa quartz saiu. Sabia que adormeceria e não enxergaria a viagem. Dessa vez, não sonhei.
Dia 12 de Janeiro de 2024. Sexta-feira.
A caixa de correios antiga pintada por mim estava ali, parada adiante. O jardim de Hibiscus Vermelhos me situou finalmente. Aquela era a casa da minha velha. Rosana Douglas. Qual era o motivo de eu estar lá? Tive a sensação de que encontraria alguns dos irmãos ali, sentia me esperarem dentro do lar ao qual crescemos. Brincamos muito naquele quintal. Boas lembranças me vieram ao pisar em cima da amarelinha desbotada em cimento duro. Felipe disse que deveria encontrar a tal senhora e o meu cachorro. Tive medo e vergonha. Caminhei com lágrimas descendo em face. − Minha velha... pudera eu te ver de novo? Queria tanto te abraçar e pedir desculpas. Ando doente. Preciso de força; de ajuda. Farei o que for possível. Te prometo: Nunca mais beberei, mãe. Seja lá onde estiver, saiba que te amo incondicionalmente. Ainda quero te orgulhar. Sei que posso. – A porta antiga abriu sozinha, como se o vento tivesse o feito. Limpei os sapatos em cima do tapete tingido em vermelho, com letras amarelas, escrito: "Love". O sofá de dois lugares ainda era o mesmo. Tudo parecia igual e intocado. Sentei, abraçando a almofada com capa de crochê feita manualmente por ela. Cheirei aquilo, olfato a procura do aroma materno. Olhei pra estante: Bíblia aberta, Salmo 23. Seu favorito. Fui até a cozinha, geladeira com imãs, porcelanato de galinha da Angola acima. Tirei o objeto de cima; dentro dele, papéis, canetas, fotos 3x4, memórias. Coloquei de volta. Abri a porta do refrigerador, garrafa de água vazia, bandeja de ovos, alguns gorados. Fechei, escorei com as costas, engoli o choro e respirei. Então, me locomovi até a parte detrás da casa para ver como estava a situação do jardim. Fiquei admirado com o que acontecia: O lugar estava lotado de pessoas, todas vestindo branco, me olhando. Estou ficando louco? Abriram passagem quando me viram. No fim do corredor de gente, estava lá mais uma daquelas aeronaves esquisitas, dessa vez, uma um pouco maior. O celular bipou em meu bolso. Olhei para a tela, uma mensagem de voz dizendo: "Entre na nave e aperte o botão do telefone". Lentamente, fui andando entre aquela multidão de pessoas. Todas simpáticas, aspectos angelicais. Desceu então a escada de acesso a aeronave, subi e fiquem em choque: Era a minha mãe que me esperava com o meu cachorro. Senhora Douglas? Dei risada. Estou morto? O que é isso tudo? Corri e abracei-a firmemente, em prantos dolorosos e aliviados. – Mãe, o que está acontecendo? Por Deus! Estou morto? Que dia é hoje, que tempo é hoje? – Olhou-me com afeto. Sua cara estava plena de alegria ao me ver. Ela tinha o mesmo sorriso do Felipe e da Amanda. Disse-me: – Filho, a pergunta não é em que tempo, e sim, em qual mundo. Aperte o botão. Partiremos. – Partir pra onde? Que viagem louca esta! Não titubeei, apertei o broto azul do aparelho enquanto Maíto, o cachorro, me lambia e balançava o rabo. Sem líquidos rosa, contemplei o voo da nave que avançava em subida rapidamente. – Mãe, o que está acontecendo? Por favor, me diga... o que faço aqui? A senhora faleceu. Alessandra me falou. – Calmamente, foi respondendo todos os questionamentos. – Doug; talvez seja um pouco difícil a compreensão. Cá onde estamos, não existe o conceito de tempo e espaço físicos. Foi me dada a permissão, então, lhe desvendarei. Aperte o botão novamente. Viajamos em velocidade da luz.
Dia 31 de Dezembro de 2023. Domingo.
− Reconhece este lugar, Alex?
− Sim. Estamos no HGE.
− Pois bem. Olhe a data.
− Não pode ser verdade. Voltamos no tempo?
− Pode-se dizer que sim. O nome disso é ubiquidade: Concomitantemente, estamos presentes em todos os lugares. De momento; suas viagens estão sendo feitas através deste aparelho concedido por Amanda. Logo, poderá visualizar as fendas em mente e ir aonde quiser. Claro que: dependerá do teu merecimento. Está no caminho certo, meu filho. Seu arrependimento é sincero, mas ainda requer cuidado e observação. Não sei o que lhe será concedido. Não tenho acesso a estas informações. A lei da fraternidade determinará.
− Então você conhece a Amanda? Lei da fraternidade? Me falaram deste termo. Do que se trata?
− E como conheço. No dia da minha passagem, foi ela quem veio me orientar. Amanda é um guia antigo de nossa família. Segure minha mão. Vamos até o quarto em que está.
Chegamos até lá. Meu corpo estirado em maca, pulsação mantida por tubos respiratórios e uma máquina. Minha mãe continuou:
− Este é o tempo atual na terra. 31 de dezembro de 2023. No dia da briga com seu irmão, em sua queda, formou-se um coágulo de sangue ao cérebro. A coisa foi séria. Te trouxemos com urgência pra cá. Ficou inconsciente até esta data e acordou para saber do meu desencarne. Minha missão foi cumprida. Tive de partir um pouco antes para que pudesse te orientar neste exato momento. Ao saber do ocorrido, tuas emoções somaram-se ao trauma, que acabou por danificar as suas células cerebrais. Este é seu estado. Está em coma, Doug. Permanecerá assim e voltará ao mundo físico por outros meios. Existem coisas que independem às nossas vontades. Tudo acontece como tem de acontecer. Um dia ficará mais claro. De momento, sua alma ainda se prende através do cordão de prata ao seu corpo terrestre. Seu coração pulsa e sua consciência vagueia nesta dimensão. Estamos na quarta: Um espelho desta última. Saiba que nada é por acaso. Poderá cumprir sua missão nestas mesmas. Tudo acontece com perfeição para o nosso processo evolutivo. Cumprido o meu objetivo, preciso continuar a jornada. Nunca estará sozinho, meu filho. Use este aparelho que Amanda te deu para viajar no tempo. Encontrará as respostas, para que um dia este elo com seu corpo em terceira se rompa. Viaje até 2020. Encontrará um escritor chamado Santana. Vocês vão se ajudar. Meio confuso, não? Ainda estamos "vivos" nesta data. Não poderá dar informações reais sobre nossos nomes. Este processo não deve ser quebrado porque já aconteceu. Ambos entenderão. O amor, a lei fraterna, Deus, Alá, Jah, seja lá como queiram chamar, sempre estará com vocês. Agora, preciso seguir...
Assim foi, o que deve ser. Vagueio pelo mundo ainda a procurar respostas. Vivemos e morremos, todos os dias.
***
Dia 19 de Setembro de 2020. Sábado.
Nada sou além de um instrumento que bate teclas. Talvez você leia a tua própria mensagem quando eu a publicar, amigo. Agradeço pelo aprendizado e sabedoria que traz. Ando um pouco distante dos meus afazeres devidos. Sinto a relação simbiótica. Bebo e fumo demasiadamente. Também estou no meu processo de cura e, este relato, não seria possível se tivesse tomado um caminho diferente. Em resposta, te digo: seremos amparados pelo amor, mas, devemos ter consciência de nossos atos. Deixo também um agradecimento aos orientadores espirituais que nos concedem esta dádiva. Não me aprofundarei em pesquisas para saber o seu verdadeiro nome. Nos conhecemos além desta dimensão e, nela, não precisamos de tais nomenclaturas para sabermos nossas identidades.
Saudações, Caique Santana.
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Crônicas por Caique Santana
Não FicçãoReuni rascunhos antigos, acumulei breve bagagem, me lembrei das aulas de português, redação e literatura. Juntei todas as boas lembranças que marcaram a minha transformação pessoal, todos os livros, referências e estudos. Vale ressaltar que: Estamos...