Capítulo V - Luz de Prata

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    Como todos os dias na Transilvânia, o sol estava escondido atrás das nuvens escuras enquanto leves pingos caíam e molhavam a grama dos jardins do templo, espalhando o suave cheiro de natureza pelo castelo. Minha segunda noite havia sido melhor do que a primeira, talvez por não estar tão embebedada quanto na primeira, pelas taças do vinho que jurei nunca mais beber, ou por terem me colocado em um quarto no andar inferior para que eu passasse longe das escadas; mas algo me dizia que aquele dia seria diferente. Talvez porque a manhã não estava sendo das melhores, estava mais frio do que o normal, frio que fez querer arrancar a perna de meu corpo. Andei com a ajuda de uma muleta que Adrian me deu até a janela e observei o jardim interno, vendo algumas pessoas, as mesmas que vi quando cheguei, passarem pelos caminhos de pedra e irem até uma parte que estava fora de minha visão.      Andreea me ajudou a colocar uma capa felpuda preta por cima das roupas casuais e grossas meias de lã. Caminhei lentamente, sentindo as constantes pontadas em toda minha perna, pelo salão principal, vendo a lareira acesa junto de algumas grandes velas espalhadas pelo cômodo. Todo o ambiente estava escurecido apesar das cortinas estarem todas abertas e o auxílio das velas. A cantoria de Svetlana fora ouvida por mim e me guiou até a cozinha, onde ela esquentava um bule de chá e cortava algumas maçãs.       – Bom dia, garota – disse ela sem me olhar, virando-se para o pequeno armário em seu lado esquerdo e retirando um pote que cabia perfeitamente em suas mãos, acompanhado de uma colher. – Conseguimos fazer seu xarope, coloquei um pouco mais de mel para ver se consegue tomar com mais facilidade – ela mergulhou a colher no líquido vermelho alaranjado e espesso, caminhou até onde eu estava e levou a colher até minha boca, rindo com minha expressão de insatisfação enquanto engolia a mistura. – Estou preparando um chá de maçã com canela, irá lhe ajudar a tirar o amargo da boca.       – Quer ajuda com as maçãs? – perguntei me aproximando.      – Não. Sente-se e trate de não mexer demais essa perna – respondeu curta e eu sorri a obedecendo.      A russa tinha a famosa personalidade osso duro de roer, mas eu a adorava. Ela não demonstrava emoções em atos mas era possível ver a chama de sua alma quando ela olhava o brilho da lua ou se emocionava lendo livros antigos de poesia sombria e erótica. Apesar do conforto que o local me fornecia, era impossível permanecer em paz sabendo de tudo o que havia ocorrido.      – Svetlana – chamei sua atenção e a mesma me olhou arqueando uma das sobrancelhas. – Eles virão atrás de mim, não virão? – perguntei vendo sua feição virar uma incógnita.       Ela deu um leve suspiro e voltou ao que estava fazendo, colocou as maças dentro do bule e pegou o vidro de mel o abrindo e sentindo seu aroma.      – Não. Eu não sei lhe dizer como isso tudo irá se resolver, mas sei que será resolvido. Depois do caderno de Ileana não acho que ninguém daquele lugar chegará perto de você ou do templo.       – Eles provavelmente entraram em contato com a minha família, meu pai deve estar preocupado.      – Adrian enviou uma carta para ele, disse que você havia sido retirada do convento para cuidados médicos mas que passava bem. Não canse sua cabeça com essas coisas agora.      – Eles vem todos os dias para o templo? – perguntei vendo algumas pessoas cruzarem o jardim.       – Eles vem conforme sua necessidade.      – E o que fazem?       – Trazem oferendas aos deuses, alguns chegam de Constanta e trazem água do mar para a fonte.       – Conte-me mais sobre a religião de vocês – perguntei a vendo colocar o líquido quente em uma pequena xícara de porcelana inglesa.       – O arcadianismo é uma religião do conhecimento de poucas pessoas, preferimos assim, não são todos que podem fazer parte, é como um clã. O guerreiro Arcadian ficou famoso em sua época pelo bem que fazia por seu povo, não demorou muito para que conquistasse um grande império, muitos o chamavam de Mestre dos Desejos – disse colocando a bebida em minha frente e se servindo.       – Mestre dos Desejos?       – Ele foi um dos maiores bruxos de seu tempo, salvou todo um vilarejo das mãos de pessoas como a do convento. Beba antes que esfrie, ira ajudar a esquentar seu corpo. Naquela tarde, Adrian me disse que iríamos para Constanta realizar um funeral apropriado para Ileana, o templo ficaria sob os cuidados de voluntários arcadianos de confiança. A viagem levaria bons dias de carruagem então deveríamos nos preparar bem e, segundo ele, devido ao fato de eu estar machucada, seria ainda mais longa pois pararíamos em alguns locais para descansar.       Alguns dias se passaram e minha perna estava começando a dar indícios de que melhoraria, mas, ainda assim, eu precisava de muletas para me locomover. Os dias passavam lentamente e o sol começou a ir embora pouco a pouco, cada dia os raios brilhavam menos no céu e davam lugares para nuvens acinzentadas e ventos que começavam como uma leve brisa e terminavam em uivos. De acordo com meu pouco senso geográfico, não estávamos muito longe do convento e após um belo sono na carruagem eu pude concluir, ao ver as grandes montanhas me rodearem novamente, que eu estava mais perto do inferno do que eu gostaria. Já estava prestes a anoitecer e o clima frio havia se intensificado conforme chegávamos mais perto, uma densa neblina começava a cercar as carruagens e minutos depois mal podíamos enxergar pelas pequenas janelas. Como se toda a tensão não fosse suficiente, o incômodo em minha perna se intensificou junto ao gelo do ar, o que me fez calçar mais duas meias de lã enquanto murmurava pela dor. Junto a mim estavam Andreea e Svetlana, que não pareceram notar meu desconforto e apreensão vendo que a morena dormia e a russa seguia lendo um de seus livros de poesia tranquilamente.       Eu cochilei por um determinado tempo, acordei momentaneamente tendo a impressão de que ouvira alguém gritar; a névoa cobria as pequenas janelas e senti meu coração palpitar ao ver a silhueta da estrutura já conhecida por mim; ali, há alguns metros em minha frente, estava o convento. No silêncio da noite eu pude ouvir meus batimentos cardíacos enquanto me movia para a porta da carruagem, onde me encontrava sozinha, e quando finalmente a alcancei senti o vento gelado invadir o pequeno veículo junto com a densa névoa que se movia como uma dançarina pelo ar, como se possuísse vontade própria.       Caminhei lenta e dolorosamente pelo gramado, senti meu coração pular uma batida ao ver que, depois da densa névoa, havia uma grande fileira com lanças de madeira que formavam uma espécie de muralha ao redor da parte da frente da estrutura do convento. A visão não me seria tão assustadora se não fosse pelos corpos que cada lança sustentava, estavam praticamente irreconhecíveis, mas ao me aproximar eu pude reconhecer alguns rostos deformados pela ponta da madeira que lhes saía pela boca. Era possível que todas as freiras do convento estivessem ali, algumas mortas enquanto outras ainda agonizavam.      Um pequeno ruído saiu de minha boca quando o corpo de uma noviça deslizou e encontrou o chão, deixando um rastro rubro quase invisível na estaca devido a escuridão daquela noite. O pânico não me deixava raciocinar para falar algo ou gritar por ajuda, olhei ao meu redor para não encontrar nada de novo, limpei as lágrimas que insistiam em correr por meu rosto e dei alguns passos em direção a porta de entrada do prédio.       – Callidora, volte para cá! – a voz de Andreea surgiu atrás de mim, próxima a carruagem.       – Andreea, o que está acontecendo? Precisamos tirá-los daqui – disse apontando para as lanças, vendo a morena com a expressão fechada, estava preocupada, aflita.      – Eles devem ficar aí. Você sabe que o frio irá piorar sua situação, por favor, entre e conversaremos lá dentro – sua fala fora interrompida por um outro grito distante e agudo que viera de dentro da estrutura em nossa frente. – Por favor, entre na carruagem, Callidora. – ela disse se aproximando.      – O que está acontecendo? Se os outros estão lá dentro podem estar em perigo, precisamos fazer alguma coisa! – perguntei fazendo menção de ir até o grande prédio novamente, sentindo sua mão agarrar meu braço rapidamente.       Desviei meu olhar de Andreea após ouvir mais um grito, fui surpreendida ao ver Soare correr pela grande porta de entrada sem o chapéu de seu hábito. Os longos cabelos cacheados voavam com o vento gelado enquanto a densa névoa dançou ao seu redor e em seu rosto o espanto tomava uma proporção maior a cada segundo, suas lágrimas brilhavam com a luz de prata da lua.       – Soare, o que aconteceu? – perguntei tentando ir em sua direção e sentindo o aperto de Andreea apertar em meu braço.       – Olha o que você fez! Serva de Satã, você os trouxe aqui – ela gritou apontando para mim. – Não bastou ter se entregado ao Diabo, decidiu levar todos da casa de Deus com você! – ela deu seus primeiros passos numa tentativa de correr em nossa direção mas antes que pudesse chegar, sumiu de meu campo de visão, naquele momento só havia a neblina.       Como se sentisse e fosse guiada por meu medo, a fumaça branca se moveu lentamente até meus pés e subiu por todo meu corpo, se não estivesse apoiada na porta da carruagem eu provavelmente a teria perdido de vista. O ar congelava minhas bochechas molhadas pelas lágrimas que caíam involuntariamente, chamei por Soare algumas vezes mas não obtive resposta alguma.      – Andreea, o que está acontecendo? Quem fez aquilo? – perguntei olhando para onde ela deveria estar com a visão embaçada, meus olhos ardiam e minha cabeça doía, era praticamente impossível conter o pânico que me consumia.       – Callidora, entre na carruagem antes que eu lhe perca de vista de vez! – ouvi sua voz ao mesmo tempo que fui puxada em direção a carruagem.       – O que está acontecendo? Estão todos mortos, não podemos deixá-los ali, Andreea – disse a vendo fechar a pequena porta.       – Não se preocupe, logo estarão de volta. Deite um pouco, está pálida – disse tranquilamente.      – Por que você está agindo como se não houvessem, pelo ou menos, trinta corpos pendurados lá fora? Nós precisamos de ajuda, precisamos chamar alguém!       – Olhe para mim – ela disse pegando meu rosto com as mãos geladas e me fazendo encarar os grandes olhos verdes. – O que está acontecendo lá é um reflexo do que fizeram com Ileana, com você e com todas as outras pessoas que sofreram nas mãos dos falsos oradores – conforme as palavras deixavam seus lábios, eu senti o que ficara preso da neblina dentro da carruagem ao meu redor, mas não era algo frio ou assustador, naquele momento me servira como um abraço quente e sonolento. – Se deite um pouco e, quando acordar, terá passado, será como um pesadelo que irá embora, eu prometo.       – Eu não irei me deitar, você está louca? – eu disse tentando ignorar a estranha sensação que pairava no ar. Minutos após tentar chegar a alguma conclusão, as palavras de Svetlana sobre como Arcadian havia salvado pessoas de tiranos cristãos vieram até minha mente. – Por favor, me diga que vocês não estão tentando seguir os passos de seu líder supremo fazendo um massacre? – perguntei abismada temendo que a resposta fosse afirmativa.       – Você sabe o quão difícil é ser uma diplomata, Callidora? – ela perguntou me ignorando totalmente.       – O que?       – Você passa anos, décadas, fazendo um trabalho árduo para poupar as pessoas pelas quais você luta; décadas são muito tempo. E então, quando você se vê próximo de qualquer tipo de êxito, pessoas como as que vivem nesse inferno chegam e arrancam todo seu esforço de você; colocam medo e falsas profecias no coração de ignorantes e inocentes e fazem o maior proveito disso – falou com tranquilidade enquanto se aconchegava nas almofadas da carruagem. – Você fica abalada mas não é o suficiente para tirar sua fé, quando você ama o que faz, e então você persiste; apesar de toda a podridão existente. Então surgem as moscas, aquelas que sempre vem no ápice da podridão e tentam tirar o maior proveito, fazem um banquete, pegam tudo o que sobrou e vão embora; te convencem que essa é a vontade de Deus.       – Do que você está falando? Pessoas inocentes estão lá fora! – perguntei confusa observando os olhos verdes serem tomados por singelas lágrimas enquanto ela levava uma das mãos até seus lábios, em um ato que pedia para que eu me calasse.      – Quando você passa por toda essa situação, entende que batalhas e revoluções não foram vencidas e concretizadas com bolos de laranja e bules de chá. Elas aconteceram porque alguém decidiu limpar toda a sujeira dos falsos santos e profetas que os ignorantes veneram – disse soltando um longo suspiro e deixando suas costas relaxarem. – É mais difícil fazer paz do que você pode imaginar, algumas noites você tem que olhar e mandar a diplomacia à merda. Afinal, não tem como manter um campo de rosas em cima de terra podre, você precisa limpar primeiro. Talvez mais tarde você entenda isso, querida. – colocou ambas as mãos em meu rosto.        – Agora deite e durma antes que eu perca minha paciência e lhe apague de vez.
      – Eu não quero – respondi forçando meus olhos para que os mesmos permanecessem abertos.      – Mas você irá dormir.      Suas mãos guiaram minha cabeça para as almofadas do banco enquanto eu sentia meu corpo pesar, clamando por descanso. Andreea acariciava meus cabelos com uma mão lentamente enquanto passava a outra por meu rosto, mais precisamente em meus olhos, fazendo com que eu os fechasse e me rendesse ao sono; mas antes pude ouvi-la contar uma de suas histórias, mas daquela vez, ela já era conhecida por mim.      – E executarei neles grandes vinganças, com furiosos castigos; e saberão que eu sou o Senhor, quando eu tiver exercido a minha vingança sobre eles.


Bom pessoal, primeiramente gostaria de agradecer do fundo de meu coração à todos que seguiram e curtiram a história, muito obrigada, de verdade! Peço desculpas por ter sumido por um tempo, tive alguns problemas pessoais mas já estou resolvendo, farei de tudo para que isso não aconteça novamente. Muita gratidão por tudo, espero que vocês tenham gostado desse capítulo, agora entramos numa fase onde eu irei explicar um pouco mais sobre a religião arcadiana e o passado da família dos Othrepluza. Gratidão! Nos vemos no próximo capítulo! Um grande beijo! 

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⏰ Última atualização: Jul 02, 2021 ⏰

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