Capítulo IV - O Templo de Arcadian

2 0 0
                                    

      Depois de muitas colinas, finalmente estávamos na Transilvânia.
      Não demorou muito para chegarmos ao nosso destino, pois o convento ficava próximo à fronteira e o hospital era no vilarejo Brasov. Me lembro perfeitamente do momento em que desci da carruagem e senti a chuva em minha pele, depois de mais de um ano em confinamento, um banho de chuva era um purificador de almas. Ouvi os resmungos de Dragos sobre estar fazendo com que ele se molhasse e decidi entrar no que era, com certeza, o maior castelo que eu já havia visto em toda minha vida. Haviam algumas pessoas entrando e outras saindo da grande estrutura gótica, alguns carregavam flores, conchas e outras pessoas apenas passeavam durante o sereno. Todos vestidos com tecidos escuros e acessórios dourados, mesmo que pequenos. Haviam crianças que dançavam enquanto a fraca luz do sol ia embora ao mesmo tempo que caminhavam para dentro do lugar.
      – Não sabia que os hospitais da Transilvânia eram tão diferentes – eu disse com uma leve desconfiança, andando com cuidado para que não escorregasse na terra úmida com a perna boa que me restara e tentando ao máximo disfarçar meu estado de embriagues.
      – Não encontrará a ciência e a medicina desse lugar em um hospital comum – respondeu ele dando duas batidas na porta de madeira carmim e sorrindo quando a mesma foi aberta por uma mulher com cabelos pretos crespos, presos em um coque baixo em sua nuca, a pele era negra e possuía um brilho dourado, como se fosse banhada pelo ouro do sol, e os traços eram firmes como os olhos esverdeados que me encararam curiosos durante longos segundos.
      – Você é tão dourada – eu disse com um pequeno sorriso que me foi retribuído.
      – Você não me disse que voltaria acompanhado – disse ela depois de um pigarro, pegando minha pequena mala da mão de Dragos e a levando para dentro, sendo seguida por nós. – Seja bem vinda! Ela está bêbada?
      – Não estava nos meus planos, precisei dar álcool para ver se disfarçava a dor – respondeu ele me sentando em um sofá marrom e retirando o casaco preto de seu corpo.
      – Não funcionou muito – disse eu na intenção de que somente ela ouvisse.
      – Ela foi colega de quarto de Ileana. Preciso falar com você, mas primeiro vou ver o que consigo fazer com a perna quebrada.
      – Foi uma queda e tanto, não? – disse ela olhando para meu tornozelo, que se encontrava inchado e levemente esverdeado. – Acha que precisará de ajuda? Você quer um chá, querida?
      – Claro, aceito. Acho que não quero ver mais vinho pelo resto da minha vida – respondi ao mesmo tempo que Dragos resmungou que a chamaria caso precisasse de ajuda.
      Os olhos verdes me encararam novamente, fatais. Era como se ela conseguisse despir minha alma e ler meus pensamentos, como se estivesse pronta para atacar a qualquer momento, uma pantera. Era hipnotizante, encantadora; por mais que eu quisesse, era impossível desviar o olhar.
      – Fique tranquila, só machuca no começo. Se quiser se embebedar, temos bastante álcool aqui, Svetlana chegou ontem com algumas coisas da cidade – ela disse sorrindo para mim e segurando meu rosto com as mãos cobertas por luvas pretas. – Em breve estará novinha em folha, melhor do que antes – disse e eu sorri de volta.
      – Ela parece uma pantera dourada.
      – É mortal como uma – respondeu Dragos.
      Ela saiu e nós deixamos a sala em seguida, eu fui acomodada em um grande quarto com janelas que iam do chão ao teto, com pinturas muito belas nas paredes. Dragos deu um longo suspiro e me encarou com um olhar que me alertava para a dor que estava por vir, colocou as mãos frias em meu tornozelo e apertou diversos locais, procurando algo incomum – que foi achado um pouco acima da junta de meu pé com minha canela. Segundos depois eu estava me contorcendo na cama, sem conseguir conter o grito que veio das profundezas de minha alma para depois encará-lo, perplexa e com lágrimas nos olhos. Eu me permiti cair na cama e liberar as lágrimas, escondendo meu rosto no travesseiro branco.
      – Não sei se está no lugar correto – ele resmungou, continuando o toque firme. – Tente mexer.
      – Não consigo mexer nenhuma parte do meu corpo agora, preciso de um tempo – respondi tentando focar em qualquer outra coisa que não fosse a dor.
      – Meu pai deve chegar a noite, Andreea irá lhe ajudar a se banhar – disse e saiu.
Andreea me ajudou a me despir e a entrar na enorme banheira da sala de banho, a água quente me ajudou como sempre e eu pude relaxar. Estava chovendo mais forte naquele momento, e parte de mim desejou estar debaixo daquela chuva como há muito não fazia; era como se a água me renovasse com o simples contato com minha pele.
      – Tem medo de noites de chuva? – perguntou Andreea enquanto molhava meus cabelos, eu devia estar encarando a janela há um bom tempo.
      – Não. Para falar a verdade, sinto falta delas. As noites de chuva Convento eram baseadas em uma junção de freiras e noviças no salão, eu mal podia ver a água cair pelas janelas. Acho que tenho mais medo de freiras – disse e ela riu. – Você é enfermeira?
      – Não, sou uma aprendiz do pai de Dragos. Não nos apresentamos formalmente, Andreea Polona – ela disse estendendo a mão molhada em minha direção.
      – Callidora Del Arcano – respondi com um sorriso singelo. – Esse lugar é mesmo um hospital? – perguntei franzindo o cenho.
      – Não, essa é a casa da família Othrepluza, o templo de Arcadian.
      – Othrepluza?
      – É a família de Dragos, eles são descendentes delo grande guerreiro. A família vem da Dobrogea, mais especificamente de Constanta, se mudaram para cá quando decidiram ensinar.
      – Não sabia que o povo da capital acreditava em rumores e contos.
      – Não, Cristãos acreditam em contos, contos que vocês leem em um livro escrito por um homem – ela disse séria. – Arcadian existiu, andou sobre a terra que hoje você pisa. Foi um grande guerreiro e, depois que conheceu sua esposa, começou a praticar a bruxaria que aprendeu com ela – explicou ela se sentando ao meu lado e passando uma esponja macia por meus ombros e braço. – Eles eram bons juntos, faziam o bem ao povo, na maioria das vezes. Se foram há muito tempo, tudo o que temos hoje é a memória e os aprendizados. Respeito suas crenças apesar de não fazerem o mínimo sentido para mim. Mas, me conte sobre você, como foi parar no inferno?
      Eu soltei um pequeno riso e fiz uma linha do tempo em minha cabeça. Eu nunca fui o tipo de pessoa que possuía uma história digna de ser contada à quem me perguntava, basicamente eu era uma criança solitária que cresceu em meio ao sofrimento, passava seus aniversários em cemitérios ao som do choro de parentes. Então, decidi contar a teoria criada por meu avô, que era a única coisa que deixava minha história um pouco mais interessante.
      – Meu avô decidiu me colocar lá porque acredita que eu possuo uma maldição. Ele diz que eu sou uma cobra, que cheguei como uma praga na família – eu disse e ela me olhou intrigada. – Minha mãe morreu quando eu nasci e então começaram uma série de mortes a perto de meu aniversário, ele diz que o diabo me condenou a tomar os anos de vida de uma pessoa para que eu viva os meus. O que fez ele convencer meu pai foi a morte de minha tia, Elisabeta. Ela era a pessoa mais próxima que eu tinha e adoeceu com o tempo, tinha crises de choro o dia todo, mal dormia, via e ouvia coisas; até que não aguentou mais e cortou a própria garganta.
      Eu ainda me lembrava daquele dia.
      O cheiro de sangue era presente em toda a casa. Ela estava esparramada no chão de seu quarto com um pedaço do espelho na mão, após vermos os machucados em sua mão, constatamos que ela havia o quebrado. A camisola azul claro estava irreconhecível, não havia coloração alguma em seu rosto gélido. Os gritos de meu avô, o choro de meu pai e de meu tio Kristian, eu mal pude chorar naquele momento, era como se o tempo não existisse mais, nada existia mais. A paz dela veio ao mesmo tempo que eu fui condenada ao inferno, mas fiquei feliz por saber que ela finalmente estava livre.
      – Não se culpe por isso – disse Andreea me encarando profundamente com os olhos verdes. – Não é justo mas, às vezes, nós pagamos por pecados de outras pessoas.
      – Eu sinto que venho pagando pecados que não me lembro de ter cometido durante toda a minha vida, mas não consigo entender o porquê.
      – Porquês são difíceis de entender. Talvez você entenda amanhã, talvez morra sem descobrir. Só não se culpe por cometer erros, pecados não existem – ela disse e eu a olhei confusa. – Se o seu deus cristão ama seus súditos eternamente, porque os condena ao sofrimento eterno quando os mesmos vão contra suas imposições? Pecados são apenas formas de colocar medo e controlar mentes fracas ou ignorantes, Callidora. Se quer ter alguma influência do cristianismo em sua vida, vá com Jesus, na história, ele foi um cara bacana.
      – Você leu a bíblia?
      – Uma vez e foi o suficiente para que eu entendesse que aquilo tudo não era para mim. Eu não acho que todos os cristãos são ruins, apenas uma boa parte. Há bondade neles, há bondade em todo lugar.
      – Você acredita em algo?
      – Eu moro no Templo de Arcadian, sou uma arcadiana. Basicamente, somos pagãos. Não existe uma religião, é apenas uma referência para pessoas do nosso tipo.
      – Não acha isso muito vago?
      – O mundo é para os fortes, Callidora. Não é vago, é óbvio. Tem toda uma história por trás, depois te explicamos melhor!
      Conversei com Andreea durante alguns minutos, mas a água já estava ficando fria e a noite já estava indo para suas horas mais escuras. Ela também me ajudou com um maravilhoso chá de cidreira que fez com que eu dormisse e só acordasse com um toque pesado em meu ombro e uma voz desconhecida me chamando. Demorei para estar com a consciência toda retomada, mas arregalei os olhos ao ver a figura de um desconhecido me encarando com uma feição estranhamente tranquila. Alto, sério, todo vestido de preto e com longos cabelos negros levemente ondulados soltos, da mesma cor de sua barba; sua única semelhança com o filho eram os olhos azuis, que me encararam indiferentes. Ele nada disse, apenas andou em minha direção e pediu para Dragos pegar alguns pedaços de pano limpo e uma pomada que Andreea havia preparado com óleos, lima da costa e pimenta.
      Meu contato com Adrian – o pai de Dragos – foi o mais rápido e vago possível. Ele falava apenas o essencial e mal me olhava nos olhos; se Andreea me lembrava uma pantera, ele me lembrava um lobo, acanhado e quieto mas sempre parecia pronto para atacar. Ele não me perguntou o que aconteceu, quem eu era ou o que eu estava fazendo ali, nem ao menos me perguntou da filha; para ele, ali, eu era um peso morto.
      Quando finalmente fiquei sozinha no quarto, burlei as orientações ditadas por Adrian e manquei – com uma extrema dificuldade, devo ressaltar – até uma das janelas do cômodo, a abrindo, me sentando no pequeno sofá e observando a chuva cair, mas não com a violência de antes, estava serena o suficiente para que eu apenas a sentisse quando o vento soprou e levou leves pingos até meu rosto. Nada poderia ser comparado com aquilo. Eu estendi minhas mãos e abracei todas as gotas que estavam em meu alcance, senti meu corpo todo arrepiar devido ao choque da água fria com a temperatura de meu corpo e sorri, sem motivo algum.
      – Você está louca? – ouvi a voz de Dragos e meu corpo se arrepiou ainda mais, eu estava ferrada. Eu fechei os olhos e franzi o cenho, se realmente aquele era o templo de um guerreiro comparado a um deu, aquela era a hora de ter misericórdia. Os passos vieram antes mesmo que eu pudesse me virar e meu braço direito fora puxando com uma força desnecessária para que eu encarasse o homem a minha frente. – Se pegar uma gripe ou uma febre terá que se curar sozinha! – avisou fazendo menção de me pegar no colo.
      – Me deixe ficar mais um pouco, faz muito tempo que não sinto a chuva assim – pedi afastando suas mãos de mim e me reacomodando no sofá, ouvindo um suspiro pesado. – Fazia muito tempo que eu não chorava.
      – Você chorou praticamente a viagem toda – respondeu com o cenho franzido.
      – Choro poético, Dragos.
      – Você está congelando, ensopada e está frio lá fora – disse ele fechando a janela, fazendo com que eu olhasse para baixo, triste. – Terá muitos momentos na chuva, o choro poético pode esperar, não se preocupe.      Você precisa descansar e parar quieta.
      O restante da noite passou rápido, eu caí no sono logo após Andreea me levar uma xícara de chá junto com roupas secas assim que Dragos deixou o quarto. Durante meu descanso, sonhei com minha tia Elisabeta; nas noites como essa, ela costumava cantar até que todos da casa estivessem em sono profundo, em línguas que eu nunca pude descobrir ou aprender. No sonho, eu a ouvia mas não a via, ficava apenas deitada na grama verde com o som de rios fluindo e sua voz sussurrando, eu podia sentir o gelado refrescante da natureza onde meu corpo se deitava e com aquela junção, pude dormir em paz após muito tempo. A mesma voz que me colocara para dormir, me despertara tão suave que só acordei realmente ao ver os raios suaves de sol entrarem pela janela. Ela repetia a frase como se fosse um mantra capaz de acalmar qualquer alma atormentada de toda a Transilvânia.
      Retirei os cobertores de cima de meu corpo e estiquei meu corpo para tentar ver através da grande janela em vão. Antes que mancasse trotando novamente até a mesma, a porta de meu quarto foi aberta por Andreea, que possuía um sorriso leve no rosto.
      – Bom dia, Callidora – ela disse pegando os cobertores e os dobrando, colocando minha perna machucada em cima dos mesmos. – Adrian disse que para deixá-la levantada o máximo de tempo que conseguir.
      – Quem está cantando? – perguntei ainda encarando a janela, a semelhança com as músicas que minha tia cantava era imensa, aquilo me deixou extremamente intrigada. Mas não foi o suficiente para que Andreea me respondesse de imediato, ela franziu o cenho e me olhou com os olhos verdes confusos até que a voz ressurgiu repetindo a frase, fazendo-a sorrir novamente.
      – Svetlana – disse Dragos entrando no quarto e observando minha perna sem tirar os lenços. – Andreea e ela ficarão com você, meu pai e eu teremos que ir até o centro, não iremos demorar muito. Como está?
      – Está doendo.
      – Verei com Svetlana se podemos fazer algo que a ajude mais – disse Andreea saindo do quarto.
      – Vou passar um pouco mais da pomada – Dragos disse mais para si do que para mim enquanto retirava os lenços brancos que envolviam metade de minha perna. Assim como na noite anterior, o processo fora doloroso e lento, ele aplicava uma pressão que eu julguei desnecessária e movia meu pé com certo cuidado, mas ainda sim era uma dor infernal.
      – Quem é a mulher que estava cantando? – perguntei novamente em meio às caretas de dor.
      – Uma amiga antiga de minha mãe, a russa – respondeu simples, sem querer falar muito. – Ela canta em todas as manhãs enquanto cuida do jardim central. A maioria dos visitantes cantarolam essas canções perdidas no tempo por aqui, terá que se acostumar.
      – Acho que posso me acostumar, minha tia cantava para mim – respondi agradecendo mentalmente por ele começar a colocar as ataduras novamente.
      – Sua tia era cristã? – perguntou e eu assenti positivamente. – Estranho, nunca vi cristãos cantarem esse tipo de canção, geralmente repudiam.
      – Esse tipo de canção?
      – Cantigas da primeira religião, todos os que conheço que as cantam são pagãos. – disse terminando seu trabalho em minha perna e se levantando. – Meu pai e eu voltamos no fim da tarde, vou pedir para Andreea trazer seu café aqui.
      – Posso descansar nos jardins? Não quero ficar o dia todo aqui dentro, juro que se me der um livro não irá ouvir falar de mim pelo dia todo – pedi feito uma criança ansiosa.
      – Está úmido e temo que volte a esfriar e chover mais tarde, pode ir mas não negue caso queiram te colocar dentro novamente – ele disse me pegando no colo e descendo as escadas.
      O jardim central do castelo era lindo. Haviam árvores e flores que eu nunca havia visto, os muros eram de pedras aleatórias e o chão era, em sua maioria, grama; haviam poucos pisos que levavam até uma fonte que ficava no meio de tudo. Uma fonte consideravelmente grande, com uma estátua de uma mulher que parecia estar correndo ao vento, pois havia uma camada de mármore moldada sobre ela em formato de um tecido; os cabelos curtos voavam também e ela tinha uma expressão serena, os braços estavam levemente abertos e ela estava nua. Era um ambiente muito bonito e tranquilo.
      Dragos me acomodou em uma parte coberta por uma estrutura de madeira, onde haviam algumas cadeiras e uma mesa que eu supus servir para cafés da manhã, já que havia um bule de chá e algumas xícaras em cima da mesma. Ele voltou para dentro do castelo, me deixando na companhia dos pássaros cantantes daquela manhã, minutos depois Andreea saiu pela porta com um cesto e se sentou ao meu lado, colocando alguns pratos com porções de ovos cozidos, queijos, tomates, pães, geleias e uma pequena barra de manteiga.
      – Ah! Esqueci a água quente e o leite – disse olhando a mesa e procurando algo mais que faltava. – Svet! Esqueci a água quente e o leite!
      Assim que disse, a russa apareceu pela primeira vez em minha vista. Carregando um bule e uma garrafa de vidro, com um longo vestido vermelho escuro que estava coberto por um sobretudo preto. Ao contrário de Andreea, ela tinha cabelos curtos e lisos, negros como seus olhos e suas sobrancelhas finas e os grossos cílios, o frio havia deixado o rosto moreno rosado e os lábios em um tom rosa claro.
      – Bom dia, garota – disse ela com uma voz rouca, seu sotaque era extremamente evidente.– Está melhor?
      – Bom dia – eu disse baixo, sem conseguir parar de encará-la enquanto ela se sentava. – Estou melhorando, obrigada!
      – Estamos fazendo um remédio para você – disse Andreea sendo a primeira a se servir. – Mas precisamos de gengibre, você pediu para Adrian trazer? – perguntou olhando para Svetlana.
      – Sim, ele disse que trará cúrcuma também. Acho que se fizermos um xarope ou uma pasta ficará melhor do que o chá – respondeu ela comendo uma fatia de pão com geleia. – Vai ficar com um gosto forte, mas você vai sobreviver. Espero que ele não se esqueça das velas douradas.
      – Não faço ideia de onde ele irá encontrar velas dessa cor.
      – Eu disse que poderiam ser amarelas, mas preciso delas hoje, a lua está cheia e já estou a quatro dias atrasada. A deusa provavelmente não me apoia em todas as decisões mas, ainda assim, eu tenho um compromisso – Svetlana disse olhando em volta por todo o jardim como se buscasse algo. – Viu Mariyko?
      – Ela estava lá dentro mais cedo – respondeu Andreea. – Mariyko é a nossa mascote, uma hora ou outra ela aparece, mas tome cuidado, é arisca como a dona – disse olhando para a outra mulher. – Você quer participar do ritual hoje?
      – Andreea... ela é cristã – resmungou Svetlana.
      – Você sabe que não pode odiar cada cristão do mundo, não sabe? – respondeu com um olhar repreendedor.
      – A força do ódio tem uma imensidão que você não conhece, Andreea, é por isso que você é a diplomata – ela disse pegando um pequeno livro e o folheando enquanto assoprava a xícara de chá.
      – É claro, o meu caminho é a paz. Toda ajuda nos rituais é bem vinda, você sabe disso.
      – Que ritual? – perguntei com a boca cheia, deixando, mais uma vez, minha curiosidade me colocar na linha de fogo.
      – Ela pode nos ajudar, Svet. Você canta, Callidora? Porque, dançar você não vai poder.
      – Não sou muito boa com arte – respondi vendo uma pequena gata preta com grandes olhos azuis sair do meio dos arbustos e caminhar lentamente até onde a russa estava, se esfregando nas canelas da mesma.
      – Mariyko! Onde estava, garota? – disse ela sorrindo levemente ao ouvir o ronronar da felina.
      Mais tarde, quando a lua estava em seu brilho máximo naquela noite, havia um ponto de luz no jardim localizado nos fundos do castelo; era uma fogueira com labaredas alaranjadas imensas, que chegavam a ser estranhas aos olhos de tão grandes. Ao redor, apenas as sombras das grandes árvores, banhadas pela luz de prata da lua e das estrelas enquanto Maryiko andava ao redor do fogo, mas eu não sabia dizer se era para se aquecer ou em desconfiança do que estava acontecendo. Estava sentada no mesmo banco onde havia passado a maior parte do dia ao lado de Adrian que lia algum livro de contos egípcios que havia encontrado no centro da cidade e bebia vinho, eu apenas observava e me sentia estranha por estar me sentindo extremamente familiarizada e confortável em um local desconhecido, com pessoas desconhecidas e fazendo possíveis rituais de bruxaria que minha religião não perdoaria; era como um pequeno animal, estava aquecida, bem alimentada e me sentia segura envolta das grades de ferro do templo de Arcadian, não havia desconforto a não ser uma perna fraturada.        Svetlana e Andreea estavam estendendo um tecido vinho escuro no chão, procurando o deixar o mais alinhado possível para depois colocar um caldeirão médio de ferro no centro e dois cálices que logo foram preenchidos por Adrian com o vinho que o mesmo bebia; haviam velas também, as douradas que a russa tanto ansiava por ter estavam lá, junto de outras de cores como vermelho e verde estavam posicionadas ao lado. Svetlana pegou também um objeto envolto em um pano branco, que descobri ser uma faca e a deixou descansar sobre o tecido no chão, mergulhando as mãos em uma pequena bacia de água morna e molhando o rosto, passando pelos fios negros e deixando líquido escorrer por seus braços e pingar em suas coxas molhando o veludo vermelho escuro do vestido que usava, ato que foi repetido por Andreea e Dragos.
      O calor emitido pela fogueira nos permitia usar roupas que não fossem tão pesadas. Eu, por exemplo, estava com um dos vestidos negros de Andreea que usava um verde escuro com mangas longas, Dragos estava com uma calça simples e uma blusa preta também de mangas longas; Adrian era o único que vestia um sobretudo preto.
      Svetlana pegou a faca, colocou o cabo em seu peito e andou até formar um grande círculo, Andreea colocou uma grande vela dourada e um pouco de louro dentro do caldeirão – que agora estava posicionado acima da fogueira. A egípcia acendeu todas as velas enquanto Dragos espalhava folhas de louro, cardo santo, cascas de cedro e algumas folhas de eucalipto pelo chão.
      – Puer matri anhelo. Adest: hoc audi. Vocationem nostram per saecula – eles falaram juntos, se abaixando para pegar cada um pequeno sino dourado e se reerguendo. O tinir dos pequenos instrumentos se fez presente e durou por cerca de nove segundos enquanto os três aguardavam o sessar do som de olhos fechados.
      – Não me aflijo, embora o mundo esteja envolto em sono. Não me aflijo, embora os ventos gélidos soprem. Não me aflijo, logo isto também será passado – eles disseram e então Andreea acendeu a vela dentro do caldeirão, que já deveria estar parcialmente derretida, fazendo as chamas crepitarem. – Acendo este fogo em Sua honra, Deusa mãe. Você criou a vida a partir da morte; o calor do frio; o sol vive novamente; o tempo de luz está crescendo. Bem-vindo, Deus Solar que sempre retorna! Salve, mãe de Tudo! Rota ignea virtus – dito isso, eles começaram a andar ao redor da fogueira, observando as chamas que ficavam cada vez mais intensas enquanto o caldeirão começava a esfumaçar. E assim passaram longos minutos, rodando lentamente e sentindo o calor na pele. – Grande Deus do Sol, nós o saldamos!
      As duas começaram a andar ao redor da fogueira, como se dançassem no ritmo das chamas, enquanto Dragos se sentou na grama com uma garrafa de vinho e, vez outra, também falava em outras línguas. Eu olhei para Adrian que se encontrava ao meu lado, com a mesma expressão serena de sempre, apenas assistindo todo o ato enquanto as labaredas refletiam nos olhos azuis que se viraram para mim.
      – Achei que os arcadianos não possuíam religião – eu comentei encarando a cena confusa.
      – Não temos – respondeu Adrian. – Essa era a religião de minha antiga esposa, mãe de Dragos. Eles, quase sempre, fazem o oposto do que a religião ensina mas Svetlana se comprometeu a sempre realizar os rituais depois que ela faleceu.
      – Eu sinto muito.
      – Recebemos uma carta do convento hoje – disse ele pegando a taça em cima da mesa e bebendo. – Fierar pediu para que você voltasse o mais rápido possível – meu coração palpitou e eu franzi o cenho esperando suas próximas palavras. – Dragos me mostrou o caderno que encontrou no quarto de Ileana, sinto muito que tenha tido que ler e passar por algumas daquelas coisas.
      – Por que deixou ela lá? – perguntei em um tom baixo, medindo cada palavra.
      – Ileana cresceu longe de mim, Dragos e eu a encontramos há pouco tempo, sua mãe fez questão que ela não soubesse de nossa existência. Eu nunca possuí um vínculo com ela, nunca desisti de a encontrar mas, quando o fiz, não houve o sentimento fraternal que eu esperava. Não há muito o que lhe dizer, minha relação com minha filha é algo muito pessoal, mas, como foi uma grande companheira para ela dentro daquele lugar, sinto que lhe devo algo, ao menos uma explicação.
      – Mas ela não conheceu a mãe – eu disse, me lembrando de todas as vezes que conversei com Ileana e ela me disse que sua família a abandonara no convento.
      – Ela realmente não conheceu, mas a mãe dela esteve presente em todo aquele tempo. Ela deixou que eu cuidasse dela por fora, mas nunca me disse algo relacionado a exorcismos ou às outras atrocidades que eles cometiam com ela.
      – Nunca a visitou? Ao menos poderia ter perguntado como ela estava – respondi me exaltando um pouco.
      – Eu sinto muito por tudo o que aconteceu lá, ninguém jamais deveria passar por tais experiências. Conheço o sentimento do abandono, você está na metade de sua vida, meu livro tem mais histórias do que o seu. Durante sua estadia conosco preciso que entenda que aqui não haverá paraíso ou alguém que ficará em seu pé toda hora, a única resposta que precisa hoje, Callidora, é que não deixarei que volte para lá – disse me ignorando e voltando a olhar para a fogueira. – E farei com que todos, isso inclui a mãe de Ileana e Fierar paguem por suas ações.
      – Já perdeu sua filha, não acha que não vale mais a pena? – perguntei engolindo o nó em minha garganta após o frio discurso.
      – Eu sou um homem de negócios simples, para as minhas escolhas, nunca é tarde demais.
      Respondeu e eu não tinha palavras naquele momento. Uma nova informação havia surgido: a mãe de Ileana sabia o que a filha passava e nunca fez nada? Ou Adrian estava dizendo aquilo para se livrar da culpa de ter deixado a filha morrer em tais condições? Meu silêncio foi confortador para ele, já que depois da breve conversa não houve mais palavras trocadas entre nós; apenas o silêncio permaneceu até que Andreea andasse até ele e o entregasse um outro cálice prateado com vinho, e dando um pequeno copo para mim, o que fez meu estômago me lembrar da alta quantidade de álcool que eu havia ingerido.
      – Agora é a hora de se embebedar! – ela disse sorrindo e entrando para dentro do castelo. 

CallidoraOnde histórias criam vida. Descubra agora