Capítulo III - O Rei perplexo compõe Aleluia

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       Uma fraca luz do sol entrou pela janela do meu quarto naquela manhã, aquecendo meu rosto e fazendo com que eu despertasse. A dor em meu tornozelo se fez presente novamente assim que movi minhas pernas para colocá-las no chão e minha cabeça estava a ponto de explodir. Me levantei com dificuldade e andei do mesmo modo até o banheiro, que ficava no final do corredor. O dia estava mais silencioso do que o comum, havia apenas três garotas além de mim se banhando e a irmã Cosmina estava sentada na cadeira acolchoada deixada lá para os vigilantes lendo um livro. Devido ao caminhar estranho, a freira moveu seus olhos para mim, medindo cada movimento que eu fazia e me surpreendendo por me notar.
– O que aconteceu? – ela perguntou deixando o livro de lado e caminhando até onde eu estava.
– Eu caí nas escadarias enquanto voltava para o meu dormitório – respondi baixo, sem encará-la.
– É o preço que se paga por sair escondido do Salão Principal, a Irmã Soare já foi avisada, não ache que sairá impune – respondeu caminhando até um dos tambores e colocando a água que era esquentada na caldeira no mesmo. – Venha, irei fazer uma compressa, entre na banheira enquanto eu busco a água fria no poço – disse e saiu.
Tirar a longa camisola branca me equilibrando em um pé só foi um sacrifício, mas logo foi compensado quando senti a água quente abraçar meu corpo e me relaxar levemente. Eu fechei os olhos dando um longo suspiro e logo depois ouvi a cortina que ficava envolta da banheira ser fechada.
– Quantas vezes temos que falar para você fechar as cortinas? Ninguém aqui é interessado em sua nudez – disse Soare, que entrara no banheiro junto da Irmã Georgeta. – Deixe-me ver. Jesus, o rosto roxo e o tornozelo está inchado – pediu colocando a mão direita na água e puxando minha perna para cima, me fazendo prender um gemido de dor na garganta. – Consegue mexer? – perguntou e eu assenti.
– Dói quando mexo – respondi arfando quando meu pé foi mergulhado na água extremamente gelada dentro do balde.
– Pare com isso, por mais que seja totalmente contra a minha vontade, teremos que chamar o Doutor Tepes. Por que você tem que fazer esse tipo de coisa, Callidora? O Padre Fierar e virá nos visitar hoje para irmos na Igreja do centro ver a missa e o coral de natal, espero que isso já tenha se resolvido até lá. Junte suas coisas, você volta para o andar inferior ainda hoje – disse Soare pegando uma toalha de dentro do armário de madeira e a estendendo para mim. – Se vista e vá tomar seu café da manhã, aguarde o doutor na sala de espera. Irmã Georgeta, a ajude, por favor.
Aquela manhã foi lenta, Georgeta ficou ao meu lado até a hora em que eu fui para a sala de espera e rezei para que o doutor chegasse o mais rápido possível. Era véspera de natal e eu não me lembrava, naquela altura, era irrelevante para mim; mas fui aguçada pela ideia de deixar aquele lugar e, talvez, nunca mais retornar. Enquanto aguardava, tomei coragem para encarar a dor de Ileana e comecei a folhear o pequeno livro preto de suas anotações, passando por desenhos e textos que, em sua maioria, relatavam a crueldade que era feita com ela durante toda sua estadia no Moș Maria. 

       "A Irmã Soare disse que hoje eu receberia a visita do Padre Fierar para mais uma tentativa de exorcismo. Todos dizem que ele é um homem sensível e de bom coração, ele ficará aqui por três semanas."

       "Ontem o Padre Fierar disse que queria me observar enquanto dormia para ver como os demônios se manifestavam, pediu para que me amarrassem na cama e foi muito difícil dormir daquele jeito. Me lembro de acordar paralisada pela segunda vez nessa semana, ele me observou enquanto sussurrava algumas palavras em latim, mas isso não teve efeito algum, acordei depois de mais ou menos dois minutos. A Irmã Soare permitiu que o Padre Fierar cortasse meu cabelo como punição por não ter sido forte o suficiente à duas noites atrás. Não é a primeira vez que ela deixa com que terceiros tomem medidas desse nível comigo."

       "Ontem acordei com o Padre no meu quarto, sentando na poltrona que fica na frente da minha cama e me encarando. Ele disse que eu parecia um dos meninos do coral, que meus traços eram mais masculinos do que femininos e que eu era claramente concebida de um pecado. Ele me ameaçou ao subir na cama, disse que terminaria o castigo de Deus e cortaria minha língua caso eu contasse para alguém o que estava prestes a acontecer. Se as irmãs descobrirem me castigariam de maneiras que nem quero imaginar. Me sinto suja, não consigo olhar para meu próprio corpo mais e sinto muita dor, achei que um banho na banheira quente me ajudaria mas a Irmã Soare disse que ímpios não podiam se banhar nela."

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