Capítulo I - O Convento

8 0 0
                                    

      Minha imortalidade vem junto de um nome que nunca esquecerei: Ileana.
      Eu a conheci um tempo depois do falecimento de minha tia, Elisabeta, que foi a familiar mais próxima que tive. Minha mãe morreu logo após o parto, meu pai diz que, às vezes, a vida e a morte vêm juntas. Eu já estava estagnada da situação em que estive durante todos os meus dezenove anos, que nunca foram comemorados. Ver minha tia deitada no caixão de madeira escura, enquanto todos choravam me fazia pensar no quão diferentes as coisas seriam se ela fosse imortal, se todos os que se foram fossem. Minha relação com a morte naquela época não era a melhor, eu não a entendia. A mesma coisa acontecia com a possível Grande Força que nos cerca, eu a questionava todas as noites querendo saber o porquê de levar todos ao meu redor sem nenhuma explicação. E foi nesse dia, que meu avô convenceu meu pai a me levar para convento Moș Maria em Wallachia, onde ele acreditava que todo o mal presente em meu ser seria levado para longe em nome do Espírito Santo, Jesus Cristo ou qualquer outra divindade cristã.
      O convento era um lugar extremamente silencioso, nós podíamos falar apenas o necessário e as preces tinham que ser em sussurros. Não vou mentir, o silêncio me agradava, meus ouvidos eram estranhamente bons para captar qualquer ruído. Nos anúncios do local, eram lindos os textos escritos em caligrafia perfeita, com pequenos desenhos e símbolos religiosos, promessas de santidade e garantia do paraíso, de alguma forma de purificação e alcance da perfeição idealizada. O que eles não contavam era a parte obscura da história mas eu não os culpo, ninguém nunca conta.
      A jovem Ileana era minha colega de quarto e podemos dizer que ela tinha alguns problemas em sua cabeça que faziam com que ela não conseguisse ser emocionalmente estável e sã. Alguns dos sussurros diziam que ela estava possuída, mas eu acredito que os problemas da pobre garota eram reflexos das crueldades que lhe faziam. Nosso dormitório era em um andar inferior da estrutura, eram necessários dois lances de escada para chegar ao mesmo, um quarto pequeno e rústico, com paredes de pedra, iluminação de velas e sem janelas. As duas pequenas camas ficavam em lados opostos e havia somente um armário e uma cômoda com uma bíblia em seu centro.
      – Olá – eu disse entrando no pequeno cômodo. Ileana estava em pé, ao lado do armário e eu me lembro perfeitamente do olhar são que ela tentava transmitir. Os olhos castanhos me encaravam com desespero enquanto ela tirava os cabelos loiros e encaracolados do rosto, os colocando atrás das orelhas. – Está tudo bem?       – falei enquanto me aproximava, seu olhar transbordava angústia e era possível ver o suor em seu corpo devido à longa camisola que ela usava.
      – O demônio não a deixa falar e, pelo visto, não a deixa usar as roupas adequadas para o convento – disse Soare, segurando-me pelo braço e se mostrando um tanto quanto desconfortável quando eu o puxei e voltei a me aproximar da garota. – Arrume seus pertences vá até o salão principal, Ileana lhe mostrará o caminho, certo? – perguntou olhando para a jovem que abriu o armário e retirou o hábito branco, acenando repetidas vezes.
Soare era a Madre do convento, era a que menos sussurrava. Responsável por tudo o que acontecia lá dentro. Eu nunca a vira com os cabelos soltos, os mesmos sempre estavam cobertos pelo chapéu do hábito mas, a julgar pelas sobrancelhas, ela deveria ter madeixas castanhas; com grandes olhos esbugalhados cor de mel que transmitiam um julgamento a cada relance. Era de poucas palavras, não gostava de conversar com ninguém e passava quase o dia todo em sua sala analisando e direcionando os perfis das noviças que entrariam no Moș Maria.
      Já Ileana fora gentil comigo desde o primeiro segundo em que eu a conheci. Me ajudou a vestir o hábito com as mãos trêmulas, que foi uma das minhas maiores dificuldades e era incrível como eu não conseguia ver demônio nenhum naquela simples menina, se ele estava lá, era mais gentil do que vários santos que eram pregados ali. Nós fomos até o Grande Salão naquele dia e aquilo virou uma rotina, tínhamos que estar lá para realizar rezas repetitivas. O que mais me recordo naquele dia foi da conversa que tive com Ileana durante a noite. Era complicado conversar num lugar extremamente silencioso e tínhamos problemas também com o fato de que a Madre Soare checava todos os dormitórios de uma em uma hora até as 21h e depois havia um guarda que fazia esse serviço para ela.
      – Está se sentindo melhor? – perguntei ao ver que ela ainda suava, a vendo acenar positivamente. – Acho que você está com febre – levei minha mão até o rosto pálido e senti a quentura de seu rosto, o que fez com que eu corresse até a porta para olhar o corredor, vendo apenas o guarda lendo um jornal velho. – Vamos, precisamos dar um jeito nisso.
      Puxei Ileana – que relutou no início – pelo braço e fui com a mesma até o banheiro, enchendo um dos grandes tambores de madeira que ficavam dispostos para banhos mais longos no poço localizado na área externa do convento, tentando fazer o mínimo de barulho possível. A ajudei a retirar o hábito pesado e tive que insistir muito para que ela entrasse na água gelada, pois estava tremendo de frio. Com muito sacrifício, ela entrou e eu puxei os cachos loiros os prendendo no topo de sua cabeça, molhando seu rosto em seguida.
      – O que está acontecendo aqui? – perguntou a Irmã Cosmina em um tom baixo e repreendedor.
      – Ela estava ardendo em febre, eu não conseguiria dormir e deixá-la assim – respondi em olhá-la, mantendo meu foco na garota que, aparentemente havia se acostumado com a temperatura da água. – Você precisa de algo? Aproveite que a irmã está aqui, podemos pedir à ela. Irmã, poderia nos trazer um bule de chá de camomila? – disse após Ileana negar todas as alternativas que eu havia lhe dado.
      – Callidora, sabe que horas são? Não é permitido nem que vocês saiam dos quartos, por questão de segurança.
      – Se realmente se preocupassem com a segurança das pessoas aqui você já teria chamado um médico para ela, está assim desde a hora que eu coloquei meus pés aqui – respondi encarando a moça que deu um longo suspiro e negou com a cabeça. – Não se preocupe, irmã, eu posso fazer um chá. Vamos – disse para Ileana que encarava toda a situação com os olhos arregalados. – Vá direto para o quarto, eu irei em alguns minutos. Muito obrigada, irmã, sua ajuda foi muito útil; com certeza garantiu um pouco mais seu lugar no céu.
Eu corri para fora do banheiro com Ileana que ainda me olhava espantada, ela foi em direção ao dormitório e eu fui silenciosamente até a cozinha, preparando o chá em poucos minutos e voltando até o cubículo onde nos alojaram. A febre aparentemente tinha abaixado, mas ainda era existente, o que me deixou preocupada pois eu não sabia mais o que fazer.
      – Se você não melhorar, teremos que chamar um médico o mais rápido possível, eu sou péssima cuidando de pessoas, não gosto nem um pouco – eu disse lhe servindo o chá em um pequeno copo de barro que era disponibilizado junto com um jarro de água do mesmo material nos dormitórios. – O que aconteceu com você? – eu perguntei me sentando em sua cama e franzindo o meu cenho enquanto arrumava a longa camisola que me fora dada para dormir, deixando o chá de lado para que esfriasse um pouco. Ela apenas balançou os ombros. – Nunca conseguiu falar? – ela negou. – Não há nenhum demônio, não é? – o gesto com os ombros se repetiu. – Por que eles checam os quartos de uma em uma hora? Parece que estamos em uma prisão.
      Perguntei também à garota se havia algum modo para que pudéssemos nos comunicar e ela retirou um pequeno caderno debaixo de seu colchão com um pedaço de giz preto de cera.
      "Estamos na ala dos ímpios.
       Obrigada.
" – respondeu ela no pequeno caderno, me fazendo soltar um pequeno sorriso.
      – Não entendo como acham que nos prendendo nesse quarto e nos olhando com julgamento irão nos ajudar – respondi bebendo um pouco do chá. – Acha que me encrenquei por causa da irmã Cosmina? – perguntei e ela acenou positivamente com a cabeça. Era ridículo estar encrencada por querer ajudar minha colega de quarto, não era? – Pois pouco me importa, que tipo de pessoa nega cuidados básicos? Negar o chá é até compreensível porque é horrível.
      "Todas aqui são assim. Elas seguem as regras de Soare como se fossem a própria bíblia."
      – Seus pais sabem que você não está nada bem aqui?
      "Não conheci meus pais, vim para cá desde muito pequena. Soare disse que fui o fruto de um pecado, por isso não me quiseram."
      – Você não acredita nisso, não é? – perguntei a vendo negar. Como pessoas que se diziam servas de Deus sustentavam uma teoria como essa sobre uma garota inocente? – A cada minuto que passo aqui confirmo que de casa de Deus esse lugar não tem nem uma vela.
      Ileana estava prestes a escrever no pequeno caderno quando ouvimos o guarda dar passos preguiçosos e vimos de relance a luz da lanterna passando pelo corredor; desejamos uma boa noite uma à outra e fomos dormir após eu constatar que a temperatura de minha companheira havia se estabilizado. Muita coisa fez sentido depois daquela informação, naquele momento, tudo era estupidamente óbvio. Eu era uma maldição e Ileana era possuída por algum demônio, não havia outro lugar para nós. Estávamos jogadas em uma jaula, sem poder ver a luz do sol ou da lua, sendo vigiadas e impedidas de sair do quarto de madrugada; éramos os ímpios, os sujos, mundanos enquanto os dos andares superiores eram os arcanjos. Os quartos eram checados para terem certeza de que os ímpios não fizessem nada de mal para ninguém, os guardas nos tratavam como se fossemos pessoas já condenadas ao inferno. A pobre garota que apenas era muda desenvolveu crises estranhas após os rituais de exorcismo que eles praticavam com ela e após ficar presa a vida inteira em um cubo de pedras, vendo a luz do dia apenas para rezar para santos que, aparentemente, não a estavam ajudando.
      Um ano se passou, junto com ele houve várias desavenças de minha parte com a irmã Soare em relação às medidas que eram tomadas com Ileana. Ela piorava a cada dia, dizia ter crises estranhas onde chegava a perder os sentidos. Eu passei a ser castigada por irreverência e recebia cartas de meus familiares pedindo para que eu me comportasse e respeitasse as regras do convento. Tais desavenças fizeram com que ela me mudasse de dormitório e me colocasse já fora da ala dos ímpios, no andar superior que eu e Ileana chamávamos de purgatório. Eu passei sete meses junto dela e tudo o que aprendi fora incrível. Talvez, eu possa dizer que a amei tal como amei minha tia Elisabeta. Ela fez com que o inferno se tornasse menos desagradável durante todo aquele tempo, ficávamos parte da noite fingindo que estávamos dançando sob a luz da lua, entrávamos nos tambores de água e fingíamos estar em um pequeno mar; tentávamos ao máximo criar uma realidade fora de todo aquele tormento, sempre enfrentando os castigos de Soare depois.
      Todos os dias após nossa separação de dormitórios eu descia até a ala dos ímpios, usando a desculpa de que eu queria orar por todos os que estavam ali em sofrimento, e deixava bilhetes para ela, perguntando como estavam as coisas e se os tratamentos brutais haviam se sessado.
      – Talvez, tudo o que ela precise seja um doutor – eu disse no dia em que consegui conversar com a irmã Georgeta, que era extremamente próxima da Madre, uma freira jovem que possuía uma feição extremamente serena. – Ela só não fala, não há um demônio nisso, talvez com ajuda médica ela apresente algum progresso, não acha?
      – Para ser sincera, irmã, eu nunca entendi o que ocorre com a pobre garota. A única coisa que a irmã Soare fala é que ela é desse jeito pois é o fruto de um pecado... provavelmente sua mãe teve relações íntimas antes do casamento ou coisa do tipo.
      – Irmã Georgeta, há tantas coisas erradas para serem colocadas como um pecado, por que nós mulheres usamos nossa intimidade para nos condenar? Conceber uma criança não é uma dádiva? – perguntei franzindo o cenho. – Não acha um pecado deixar a pobre garota trancada num quarto na maior parte de seu dia e praticarem rituais de exorcismo sem terem um laudo médico?
      – Está dizendo que a voz do homem deve ser ouvida antes da voz de Deus? – me perguntou arregalando os olhos. – Está na bíblia. Não discuta mais sobre isso – disse e se levantou. – Pare de chorar e se importar com o modo que tratamos Ileana, é para o bem dela.
      – Eu vou lutar pela justiça por ela, irmã. Temos que lutar por quem amamos, então, eu tenho lutado e irei lutar, eu tenho chorado e eu até morrerei por me importar.
      Duas semanas depois eu desci até a ala dos ímpios e escrevi para Ileana, mas assim que peguei seu bilhete o guarda disse que Soare procurava por mim e isso fez com que eu guardasse o pequeno papel comigo até o final do dia. Após a missa das 19h, enquanto andava para meu dormitório, escutei a irmã Dominique correr até mim e sussurrar que no dia seguinte teríamos o enterro de Ileana, que não resistira a mais uma tentativa de exorcismo. E foi ali que eu me culpei por não poder fazer mais nada, as irmãs Georgeta e Soare haviam me prometido que chamariam um médico caso ela não melhorasse, em vão. Naquele dia não houve jantar para mim, não houve mais nada. Eu apenas entrei no quarto e peguei o pequeno bilhete que me havia sido entregue mais cedo.

"Espero que esteja tudo bem com você e que os banhos de sal que Soare estava lhe dando diariamente tenham acabado. Hoje eu acordei melhor, não tive nada durante a noite e consegui dormir tranquila. Mas estou triste porque cortaram meu cabelo como penitencia por derrubar a estátua de Nossa Senhora ontem, foi um acidente pois eu estava subindo as escadas para ir até o Grande Salão e caí, batendo meu braço nela, ele até ficou um pouco roxo. Também sinto sua falta, mas acredito que vamos nos ver logo, a irmã Georgeta disse que, por ter dormido sem fazer barulhos hoje, talvez eu saia da ala dos ímpios mais rápido do que eu imagino. Amanhã eu irei ver se consigo lhe escrever um poema como presente de aniversário, caso eu não lhe vejo amanhã lhe entrego depois. Feliz aniversário, Calli!!
Com amor, Ileana."

      O bilhete foi guardado por mim com muito carinho. No dia seguinte, eu fingi ir no sepultamento mas aquilo não era de meu interesse; não queria vê-la magra e com a aparência sofrida que ela se encontrava, até porque ela não estava mais ali. Sempre soube que minha ligação com ela era algo muito além do físico. Havia um sofrimento em minha alma, e eu passei a acreditar que eu realmente era uma maldição. Pois amei minha tia e Ileana com a mesma intensidade e as duas se foram, uma após a outra, ambas em uma data que deveria ser feliz para mim. E mais uma vez eu me peguei pensando na imortalidade, no quão as coisas seriam diferentes se elas fossem eternas ou se eu fosse junto com elas.
      Por sorte, ninguém me viu andando até a fonte localizada no fundo o convento. Decidiram sepultá-la depois da missa das 19h, o que me foi confortável pois eu sempre me senti mais à vontade sob a luz de prata da lua. Eu estava sentada na beira, com meus pés quase sendo congelados pela água gelada da fonte. Eu pedi para Georgeta que me deixasse ir até o quarto de Ileana e consegui pegar o pequeno caderno que ela deixava embaixo do colchão. Foi naquele momento em que eu me permiti chorar tudo o que eu não havia chorado ainda, eu chorei por Elisabeta, chorei por Ileana e me permiti chorar até por mim. Mas dentro de meu coração eu sabia que eu havia as amado até a morte e além.
      – Callidora! O que está fazendo aí? – perguntou a irmã Dominique. – O irmão de Ileana está aqui e disse que quer falar com você.
      E agora entramos no real começo dessa história, Dragos.

CallidoraOnde histórias criam vida. Descubra agora