Capítulo II - A Casa de Deus

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       Eu retirei meus pés da água gelada e sequei as lágrimas que corriam pelo meu rosto. Entrei e caminhei até o Grande Salão, para ali perceber que havia esquecido de calcar as sapatilhas. Observei a figura do homem grande, alto e pálido, com cabelos que eram loiros, quase brancos, e caíam alguns centímetros abaixo de seus ombros. Me aproximei dos dois com passos suaves, como de um gato em um lugar suspeito prestes a levar um bote. Eles conversavam em voz baixa, Soare estava claramente desconfortável e ficou ainda mais quando me viu.
– Essa é a noviça que compartilhou o quarto com sua irmã, Callidora Del Arcano – disse ela olhando diretamente para meus pés e depois me fitando com feição de penitência já conhecida por todos do convento.
– Boa noite, senhorita Del Arcano. Sou Dragos Othrepluza, irmão de Ileana – tudo o que consegui fazer naquele momento foi dar um singelo sorriso enquanto parava de sentir meus pés aos poucos. Ele estendeu sua mão e eu retribuí, sentindo seus dedos tão gélidos quanto os meus e, quando ele levou minha mão até seus lábios eu me senti ainda mais próxima do frio daquela noite. – Está congelando, gostaria de vestir algo mais quente antes de conversarmos? – perguntou e eu fiz menção de responder, sendo interrompida por Soare.
– Com certeza ela gostaria, Callidora sabe que esses não são trajes adequados para se usar fora dos quartos. Vá prender seus cabelos e vestir seu hábito, encontre-nos assim que terminar – disse ela em um tom de reprovação. – Estaremos lhe esperando na sala de estar, se aprece!
Eu andei até o quarto mal sentindo o chão tocar meus pés. Naquele momento, tinha certeza que meus lábios estavam quase roxos e ainda por cima havia esquecido a janela do quarto aberta, fazendo com que o mesmo estivesse congelando. Coloquei as vestimentas o mais rápido possível, prendi os cabelos em um rabo de cavalo baixo e caminhei até a sala onde eles me esperavam; sentados no sofá marrom que ficava de frente para a lareira, que, acompanhada das velas era a única iluminação do cômodo. Havia também um bule de chá que, pelo aroma, era uma mistura de cidreira e mel.
– Senhorita Del Arcano, pedi para que a irmã Georgeta nos fizesse um bule de chá – disse ele servindo a bebida em uma xícara. – Por favor, sirva-se. Irá lhe ajudar a esquentar o corpo. Irmã, se não se importa, eu gostaria de falar com a jovem a sós – ele disse, recebendo um olhar surpreso tanto de Soare quando meu.
Ela engoliu a seco e, por um momento, deu a entender que iria discordar, mas saiu da sala com um caminhar desgostoso e lento enquanto eu sentia meu coração palpitar em meu peito, ansiosa para saber sobre o que o irmão de Ileana gostaria de falar comigo. Quando estávamos finalmente sozinhos, ele apontou para o sofá para que eu me sentasse e assim o fiz, me servindo do chá quente.
– Eu lhe conheci há quase meia hora e você não disse uma palavra se quer – ele disse mais para si do que para mim. – Se ela ficasse eu creio que nunca ouviria sua voz.
– Ileana me disse que não tinha família, quem é você e o que está fazendo aqui? – disse apreensiva, encarando o homem com hesitação.
– Minha família é um tanto quanto complicada em relação à familiares, senhorita. Por favor, acredite, minha única intenção é saber o que houve com minha irmã – respondeu retirando o sobretudo preto que usava e o estendendo no sofá onde estávamos sentados.
– Isso não explica nada. Sabia que ela estava aqui o tempo todo e nunca fez nada? Quer saber o que houve com sua irmã? Está morta.
– Georgeta me avisou que era um pouco alterada para uma noviça... é uma situação complicada...
– Complicada? – o interrompi. – Esse é o problema desse lugar, tudo é sempre mais complicado para vocês do que para os outros. Você deixou sua irmã viver uma vida de merda, ouvindo que era fruto de um pecado, sendo tratada como um objeto preso em um quarto que não possuía nem janelas!
– Eu entendo sua revolta.
      – Não, você não entende.
Vê-lo falar daquele jeito fez com que uma ira caísse sobre meu corpo. Ileana sofreu na frente de meus olhos durante um ano e sabe-se lá quantos anos mais, nenhum familiar nunca veio visitá-la ou coisa do tipo, ela era sozinha, assim como eu. Durante seu período viva do meu lado, eu tentei de todas as formas entrar em contato com alguém que pudesse ajudar, com algum médico ou até mesmo um padre que possuísse uma mente mais aberta; mas era como um grande círculo, onde eu corria sem sair dos mesmos lugares.
– Se sabia o que ela passava aqui, por que nunca veio atrás dela? Eu não compreendo, que tipo de monstro é você? – perguntei franzindo meu cenho e sentindo meus olhos arderem pelas lágrimas que persistiam em encharcar meus olhos. Dragos me olhou de imediato, colocando a xícara que me ofereceria em cima da mesa e dando um longo suspiro em preparação para o que me responderia, um ato que eu respondi negando com a cabeça. – Não precisa dizer nada, ela já está morta de qualquer jeito. Vá embora, deveria ter vindo enquanto ainda tinha uma irmã.
– Minha irmã, assim como você, não acabou aqui por livre e espontânea vontade – ele respondeu frio, como se realmente não houvesse nada a ser feito. – Se pretende me trazer o sentimento de culpa saiba que eu já o tenho há muito tempo. Com todo respeito, há muitas coisas sobre nossa família que não podem ser explicadas em uma simples conversa, senhorita Del Arcano.
– Com todo respeito, a última coisa que me interessa nesse momento são os mistérios de sua família, senhor Othrepluza. Apenas uma pessoa de todo esse seu mundo complicado me interessava e ela está morta – eu disse encarando os olhos verdes que me fitavam intrigados e com um semblante levemente raivoso. – Vá direto ao ponto e me diga de uma vez, o que quer comigo?
– Ileana tinha um pequeno caderno de capa preta que não foi encontrado em seu quarto. Eu receio que haja coisas que possam me ajudar a ir atrás de médicos ou algo semelhante, para dar uma justificativa justa de sua morte. Estava conversando com Georgeta e ela disse que você era próxima a ela e que foi até lá mais cedo – ele disse depois de um longo suspiro. Eu senti meu coração palpitar em meu peito, tentei disfarçar ao máximo enquanto tomava mais um gole do chá.
– Não faço ideia de onde possa estar – disse ainda encarando os olhos frios e o rosto pálido que formava um singelo sorriso.
– Mentiras e ousadia na casa de Deus, irmã? – ele disse sarcástico.
– Deus não está aqui há muito tempo, a morte de sua irmã é uma prova disso, irmão – respondi sem pensar e eu pude ver um rastro de emoção pela primeira vez naquele ser tão misterioso sentado em minha frente. Ele parecia intrigado e surpreso e eu já estava farta daquela conversa que, aparentemente, não me levaria para lugar nenhum. – Esse lugar não passa de uma casa vazia cheia de ruídos, não restou mais nada para você aqui.
– E o que restou para você? – ele perguntou. – Não perca seu tempo aqui, há muito do lado de fora que você deve conhecer, há muito que você deve fazer – disse se levantando e caminhando até seu sobretudo preto que estava pendurado em um dos cantos da sala. – Agradeço sua atenção, senhorita Del Arcano. Peço desculpas que tenhamos que nos conhecer sob essas circunstâncias e, apesar de acreditar que não tem uma boa impressão de minha pessoa, gostaria de lhe agradecer por tudo o que fez por minha irmã no tempo em que esteve junto dela. Caso encontre algo de Ileana que ache importante, peça para Soare entrar em contato comigo, não hesitarei em vir – suas mãos geladas, agora cobertas por luvas de couro, foram até o topo de minha cabeça, colocando os pequenos fios rebeldes de cabelo que escapavam do capuz branco em seu devido lugar. – A sorte favorece os ousados, Callidora.
– Eu não acredito em sorte, senhor – respondi vendo um pequeno sorriso se formar nos lábios avermelhados. E ele partiu, tão rápido que mal tive tempo de ver a carruagem o levar para longe das altas montanhas.
Os dias no Moș Maria passavam-se arrastados e, a cada minuto, era como se eu deixasse meu corpo um pouco mais. Depois de dois meses eu poderia jurar que era parte da mobília, estava decidida a não participar das atividades – mesmo sabendo que haveriam punições futuras –, nem mesmo queria ir até a cozinha para fazer as refeições. Eu me lembro perfeitamente do dia em que decidi sair daquele lugar.
A chuva chegou como há muito não fazia e os ruídos dos fortes ventos eram extremamente assustadores do lado de fora, nem mesmo as velas pareciam querer se manter ascendidas. Os raios que marcavam os céus nos ajudavam com a iluminação, Soare pediu para que todas se reunissem no salão principal por precaução – havia um medo em torno das árvores caírem e levarem consigo as paredes do convento (eu agradeceria imensamente). Estava frio naquela noite, eu mal sentia os dedos dos pés que estavam cobertos com uma meia grossa de lã branca e as camas improvisadas em cima dos bancos do salão não eram em si as mais confortáveis, mesmo com os cobertores postos abaixo e acima de meu corpo; eu tremia, rangia os dentes e me assustava com o barulho constante dos trovões. Naquele momento, um pequeno flashback pareou minha mente; desde meu primeiro dia ali, somente uma sensação se mantinha cem por cento presente em todos os momentos: o vazio. Eu era como um jarro sem fundo, que quanto mais se colocava a água, mais se entendia o tamanho do vazio ali presente.
Ileana havia partido, no começo, havia dor e amor mas com o passar do tempo tudo o que me restou foi a raiva e a angústia no coração. Eu virava o corpo trêmulo para os lados, tentando achar uma maneira melhor para me ajeitar, e cansada de toda aquela situação; então me levantei e fui até Cosmina, a freira que estava de vigia naquele período, com os olhos cheios de lágrimas e o coração na garganta, me perguntando até quando eu estaria disposta a aguentar tudo aquilo.
– Irmã Cosmina, poderia me arranjar outro cobertor? Estou congelando com um só – perguntei olhando para a mulher que tinha os olhos azuis fixos em uma cópia da bíblia em suas mãos. A mesma não esboçou uma mínima reação, seu único gesto foi virar a página e voltar a sua leitura. – Irmã Cosmina? – perguntei em um tom mais alto, me abaixando para ficar em uma altura onde eu poderia ver seus olhos. Sem respostas, levei minha mão esquerda até o ombro dela, que se moveu assustada ao sentir meu toque e passou os olhos por todo o salão, olhando para trás em seguida, como se procurasse a fonte de energia que havia lhe tocado. – Irmã, o que foi? Está tudo bem?
Me custaram dois chamados a mais para constatar que ela estava me ignorando completamente, ou que minhas teorias estavam certas e eu havia me tornado invisível. Agoniada, me movi em direção à Georgeta, que dormia a poucos metros dali. O processo se repetiu enquanto meu rosto começava a ser banhado por lágrimas de desespero, eu a tocava, sacudia e falava alto, sentindo minhas mãos tremerem cada vez mais.
Passei meu olhar pelo salão vendo que, apesar de todo meu espetáculo, ninguém havia se movido. Os raios ainda cortavam o céu e os ventos uivavam, deixando a noite mais assustadora do que ela deveria ser e fazendo com que a adrenalina em meu corpo aumentasse. Eu andei em passos trôpegos até a cama improvisada, passando minhas mãos pelo rosto e tirando os cabelos negros de meu rosto enquanto secava as lágrimas; retirei tudo o que havia colocado ali e caminhei em direção ao meu quarto. Sabendo que teria que passar por um pedaço aberto, me preparei para acelerar os passos, chegando rapidamente no corredor que dava acesso aos quartos. No último degrau da pequena escada, meus pés se enrolaram nos cobertores e lençóis que eu carregava, fazendo com que eu escorregasse e torcesse meu pé esquerdo, batendo a bochecha em uma das grandes esculturas angelicais de mármore que cercavam os corredores. O murmúrio soltado por mim fora abafado pelo uivo dos ventos e, depois de um minuto me acostumando com a dor e com a imensa tontura, eu me levantei, mancando até o dormitório, soltando um longo suspiro quando consegui chegar até minha cama.
Me deitei rapidamente, jogando todos os cobertores sobre meu corpo e sentindo meu queixo tremer de forma absurda e meu rosto arder. Eu não sei o que aconteceu naquela noite, o porquê de Cosmina e Georgeta me ignorarem por completo, não entendi nem mesmo o porque do tamanho frio que fazia. As lágrimas voltaram, como se estivessem me ajudando a aliviar tanto a dor física quando a emocional, se é que havia algum emocional restante. Eu sabia que Ileana podia me enxergar, em qualquer lugar daquela caixa vazia que elas chamavam de casa de Deus, e depois que ela se foi eu podia gritar, chorar, me debater e etc; ninguém me veria. Eu estava convicta: assim que a chuva passasse, quando o sol retornasse eu me libertaria daquela prisão.
Antes de cair no sono, em meio de um dos diversos devaneios, eu sabia que minha vida toda havia sido daquele jeito. Eu sempre estive em todos os lugares mas ninguém nunca conseguia me ver, a verdadeira garota que foi ocultada durante toda sua vida não seria vista. E mesmo em um lugar supostamente sagrado, na casa de Deus, ninguém nunca me via.

Anotações:

- Callidora é sonsa mas sabe dar respostas afiadas, ela está no caminho para se tornar a Elvira, rainha das trevas.

Gratidão e até o próximo!

CallidoraOnde histórias criam vida. Descubra agora