"A tragédia da idade não é que ficamos velhos, mas que ainda somos jovens"
- Oscar Wilde (O Retrato de Dorian Gray)Vilma não tinha mais idade para imaginar coisas, seus sessenta anos já não permitiam mais. A televisão cansava sua vistas, livros, jornais ou revistas não se eram mais vendidos nas bancas. Ela não tinha ninguém, seu marido morreu, seus filhos se casaram e não moravam mais em sua cidade, seus netos tinha escola e ela já não mais podia os mimar. Os passarinhos de sua gaiola, que alegravam toda a casa com seus lindos cantos, morreram por conta do gato. Há algum tempo, ela tinha tirado a gaiola da parede e colocado na mesa enquanto buscava ração para os dois lindos canários, o gato não se fez de bobo e os atacou.
O gato! Só de lembra do gato ela chora!
Seu amiguinho peludo já tinha quase dez anos ao seu lado, sempre fora um animalzinho dócil e meigo. No dia em que ele atacou os passarinhos, ficou escondido por horas e a dona teve que o perdoar. O coitado não tinha culpa dos seus próprios instintos... Mas ele fugiu e não mais voltou, fugiu sem dar sinal nenhum, simplesmente desapareceu porta a fora.
Quanta dor! Já tinha se passado meses e nada do bichano!
Agora ela estava completamente só, só e somente com sua fé. Dona Vilma é católica, mas não frequentava mais a igreja. Ela achava a irmãs muito hipócritas, e o padre muito desanimado. Acredita que com o passar do tempo todas as igrejas foram perdendo aquela fé e animação que tinham, perdeu-se a necessidade de buscar a Deus com fervor, parecia que só estavam ali porque se sentiam obrigados pelo medo do inferno.
Vilma não se sentia assim, apesar dessa triste solidão. Ela preferia ouvir as orações nos programas de missa do que assistir aquela má vontade da igreja de manter os seus fiéis acordados. Preferia sentar em sua cadeira de balanço e tricotar algo que nunca terminaria enquanto ouvia aquele padre tão animado que parecia estar dando um show católico.
As vezes ele contava piada e ela ria. Vilma se surpreendia com seu próprio riso, era um som juvenil que imaginava já não mais existir. Aqueles curtos momentos em que ria, fazia ela lembrar de todas as risada que já dera. Seu riso preenchia a sala de lembranças, fazia ela se emocionar de prazer. Depois de ri, ela sorria meio tímida como se tivesse vergonha da sua própria alegria, como se fosse inapropriado. Pois era Vilma uma velha solitária, não deveria ficar rindo por aí. Rir era virtude dos jovens, e das velhas que tinham uma boa companhia.
Ela tinha medo de passar mal de tanto rir, e não ter ninguém para a socorrer. Morar no interior dificultava mais ainda o riso, ela não podia rir com a segurança de que teria um médico para atende-la. Seus filhos até tentaram convence-la a morar na cidade, ofereceram-se para comprar um casinha perto da deles, com um quintal bonito e verdinho. Mas como uma boa velha, Vilma bateu o pé e disse que não sairia da casa onde ela passou toda a sua juventude..
Mas isso doeu! No fundo, no fundo, tudo o que ela mais queria era estar perto da família que lhe restava. O número 70, fazia ela se sentir pressionada a ser sozinha e esperar pela morte.
Ela não conseguia ser ranzinza, apesar da sua situação. Não conseguia odiar crianças barulhentas como as outras pessoas de sua idade, pelo ao contrário, ela adorava qualquer sinal infantil por perto. Vilma odiava tricotar, mas tricotava como se fosse uma obrigação. Odiava com todas as forças assistir programas de culinária, mas assistia mesmo assim. E o pior de todos para ela... Ela odiava fofocas!
Ah! Mas como isso a deixou impopular entre as outras senhoras!
Dona Célia, sua vizinha, diversas vezes tentou fazer com que ela saísse de casa para sentar na calçada e fofocar sobre a vida alheia. Dona Pérola, além de ser a melhor amiga da Dona Célia, era também a mais mortal das fofoqueiras. As duas se uniam para destruir os moradores com as suas línguas perversas.
Seu principal alvo era a Dona Evarista, uma idosa de vida pior do que da nossa personagem. A coitada só vivia chorando, só saia de casa para ir em enterros. Os filhos de Evarista eram uma decepção total, um se entregou as drogas, a outra desaparecia e só voltava grávida, e o terceiro estava indo no mesmo caminho do primeiro. Todos viviam na mesma casa, ela, os três filhos, a namorada do primeiro e os seus netinhos, filhos de sua filha. Eles tornavam a vida dela uma grande dor de cabeça e rendiam muito conteúdo para as fofoqueiras de plantão.
Vilma não concordava com o que Dona Célia e Dona Pérola faziam com a pobre coitada. Ela sabia muito bem que se unisse a elas formaria uma trindade diabólica e dominariam a cidade. Também sabia que Dona Evarista era a pessoa com vida mais triste da rua, e que um dia iria ou morrer ou se mudar. E depois disso?De quem as fofoqueiras falariam?
Dela é claro! Da segunda pessoa mais quieta e triste!
Dona Vilma não podia se misturar com gente desse tipo, não fazia sentido para ela. Preferia ser solitária então, ao invés de estar acompanhada por uma dupla de cobras traiçoeiras.
"Dona", era um termo que adotou para si. Seu nome, Vilma, tornava o processo de aceitação ao envelhecimento mais fácil. Até aos 59, ela preferia ser chamada carinhosamente de Vil, mas desde o seu último aniversário, esse apelido tão curto e jovial não lhe serviria mais.
A verdade é que a vida toda ela viveu o presente, sem jamais pensar no futuro. Mas é claro que o futuro chegou, maquiado de presente, mas chegou. Ele chega para todos, a gente é quem finge não notar a passagem do tempo.
Sua infância fora modesta, mas muito feliz. Sua adolescência foi memorável, apaixonante. Sua a fase a adulta foi de fato a realização dos seus sonhos de menina. Mas e agora? O que vinha depois?
Em todas essas fases da vida, ela sempre teve a orientação de alguém. Ela sabia como deveria se vestir, como se comportar, o que deveria fazer. Mas agora, nada mais sabe, seu conhecimento foi se apagando como um alzheimer.
Ah! Alzheimer! A famosa doença dos idosos! Idosa! Ela é uma idosa!
Vilma se via ansiosa demais, temerosa demais. Sem saber como agir, ela reproduzia feito um papagaio as coisas que normalmente via as outras pessoas de sua idade fazer. Mas isso sempre a entendiava, ela precisava de algo a mais...
Ou talvez ela não esteja pronta para a velhice! E teria culpa?
Vilma ainda se sentia tão jovem quanto uma pré-adolescente e tão alegre quanto um bebezinho. Ela é o que muitos chamam de "Alma de criança".
Nem imagina o quanto deve ser difícil para ela aceitar o peso de sua nova idade. Vilma não mudou nada, mas tentava mudar. Ela cobrava a si mesmo o envelhecimento de sua alma, condenando a própria a exercícios típicos de velhinhos.
Ela bem chegou na terceira idade! Bem chegou e já quer ser a melhor! Como se isso fosse uma competição! Haha...
É uma forçação de barra à resiliência, é a necessidade da adaptação. É Dona Vilma querendo ser velha, quando no fundo é só uma garotinha.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Pecados Do Mundo
Short Story"Pecados do Mundo" é uma seleção de contos que narram as perspectivas de vários personagens de diferentes idades e sexos a respeito das situações do mundo e da humanidade. Não é um livro que aborda sobre pecados, mas sim sobre sentimentos e emoções...