VI

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Era uma noite particularmente fria, nada novo para aquela época do ano, mas um tanto incômodo para Miguel e os outros integrantes do grupo de teatro uma vez que, estando ali para encenarem uma adaptação do Auto da Compadecida, estavam vestidos como se morassem debaixo do sol do sertão do nordeste. Miguel usava uma camisa de linho surrado, calças na altura do tornozelo — deixando um ventinho incômodo correr sobre seus pés — sandálias de couro e um chapéu pendurado atrás das costas. Era a roupa de Chicó mais precisa que se poderia ter para aquela peça, mas algo muito pouco adequado para a ocasião.

E levando em conta como Miguel quase não sentia frio, se ele estava com um arrepiozinho na pele, sentiu pena de Letícia, outra garota da companhia sentada ao seu lado em um vestido de chita para fazer a mulher do padeiro.

Estavam agora na bagunça dos bastidores atrás do palco montado para eles. O festival acontecia em um dos parques da cidade, ao ar livre, cercados de árvores por todos os lados. Teria sido ótimo em um dia quente, tinha certeza disso, mas hoje... Ele suspirou, sentado na cadeira de frente pro espelho, girando devagar nela. O camarote improvisado ali continha duas baias de cortina pros atores trocarem de roupa, dois espelhos grandes com suporte apoiado no chão e algumas cadeiras. A apresentação deles era a última da noite, para desespero de Miguel, que agora estava passando por um dos maiores pânicos das últimas semanas.

Isso porque a companhia de balé de Clara estava no palco. Sabia disso mesmo sem ver por reconhecer a mistura de clássico com Cabrobró, do Tianastácia, estourando nas caixas de som. Parte dele queria muito estar assistindo aquilo, mas receava colocar a cara para fora do camarote e ser reconhecido por Lucas e Pedro, estes certamente sentados na platéia assistindo-a. E não era como se isso fizesse muita diferença agora. A menos que eles fossem embora logo depois da apresentação de Clara, algo com o que Miguel estava contando, veriam-no subir no palco em seguida.

Tudo bem, talvez eles fossem embora. Podia ter esperança, não podia? Havia chance de não ser visto ali naquele dia. Já tinha lhe bastado usar a mesma desculpa da tia inexistente para justificar porque não estaria assistindo a apresentação de Clara, não precisava ser pego na mentira justamente no palco.

Miguel se agarrava nessa esperança como se fosse uma bóia no meio de um naufrágio, mas devia ter imaginado dessa bóia ser mais falsificada que os óculos escuros de seu pai comprados no Oiapoque. Quando daria uma sorte desse tamanho? Nunca. Certamente não agora.

A apresentação do balé acabou, e Marisa tinha acabado de chegar no camarote, com o braço passado pelos ombros de um garoto, guiando-o para o local e chamando a atenção de todos com palmas. E quando Miguel se virou para olhar, sentiu o sangue fugir de seu rosto na mesma hora. Era Lucas

Ali estava, parado ao lado dela, segurando uma maletinha prateada de maquiagem e parecendo muito orgulhoso de si mesmo. Miguel teve apenas um milissegundo para pensar, e sua reação imediata foi virar a cadeira de costas e colocar o chapéu. Ajeitou o acessório às pressas, inclinando-o para a frente o máximo possível sem ficar estranho, tentando esconder seu rosto com aquele gesto.

A tentativa era patética, sabia disso, mas não pôde se impedir. Ele girou a cadeira de volta para Marisa, pois ela estava esperando a atenção de todos para falar, e cruzou os braços, tentando disfarçar sua identidade o máximo possível. Lucas devia estar ali para fazer maquiagem nas meninas, e pronto. Não tinha com o que se preocupar. Podia sumir até a hora de subir ao palco e problema resolvido.

— Gente, um minutinho da atenção. Esse aqui é o Lucas Assis, ele fez maquiagem na companhia de balé que tava no palco agorinha mesmo. Eu acertei um precinho com ele e ele vai fazer uma maquiagem de palco pra nós também.

Oh não. Oh não. Maquiagem de palco não era só batom nas meninas, era pó na cara para espantar reflexo de refletor também. O tipo de coisa da qual não havia chance de Miguel escapar, estando ali para fazer um dos personagens principais da peça. Ele olhou para a máscara de Diabo em cima da mesa e se iludiu por um instante em colocá-la na hora e fingir que ia estar de máscara o tempo todo e portanto não precisaria de maquiagem, mas já estava vestido como Chicó. Fim de jogo, não ia dar para escapar.

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