II

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Algumas semanas depois, Leah estava sentada nas bancadas do grande estádio da cidade W a assistir à cerimónia de abertura dos Jogos Paralímpicos. Os Jogos Olímpicos, dos quais ela tinha feito parte, tinham terminado há vários dias e agora era chegado o momento do outro grande evento que o país Q acolhia em 20XX.

A alegria do evento podia ser sentida como uma onda pulsante, tão ou mais forte do que aquela que tinha envolvido a abertura dos Jogos Olímpicos. Por todo lado havia dança e demonstrações da cultura do país anfitrião, acompanhados de sorrisos e boa música. Mas aquilo que realmente aqueceu o coração da jovem foi a parada dos atletas.

Ao chamarem a Austrália para entrar no estádio, mais de 800 atletas entraram em procissão, acenando ao público e abanando pequenas bandeiras atrás do triatleta cego, guiado por um outro, que tinha sido escolhido como porta estandarte naquele ano. Leah sentiu orgulho pelo grande número de compatriotas que tinham a oportunidade de participar num dos maiores eventos desportivos do mundo. Porém, aquele que mais alegria e orgulho lhe trazia era o estreante Emmett Welsh, que impulsionava as rodas da sua cadeira enquanto olhava em volta, maravilhado e nervoso.

Desde criança que ele sonhava pisar um estádio olímpico, não como espetador ou como atleta que o visita depois do evento terminar, mas como competidor. E agora, depois de tanto esforço e sofrimento, tinha alcançado o seu objetivo. Era tanta a sua excitação e felicidade que a sua namorada poderia jurar conseguir de ver o brilho dos seus olhos, mesmo à enorme distância a que estavam um do outro.

Leah tinha conhecido Emmett antes da paraparesia se manifestar. Já se tinham cruzado algumas vezes em diversas competições por toda a Austrália, mas só foram apresentados um ao outro na sua adolescência. Leah tinha 16 anos e Emmett tinha 15 quando os selecionadores nacionais, feminino e masculino, respetivamente, os convidaram a vir treinar, pelo menos duas vezes por mês, com a equipa olímpica. O seu talento em bruto tinha sido reconhecido e ninguém queria que aquelas jovens estrelas deixassem o desporto antes de terem tempo de brilhar.

Como viviam ambos em New South Wales, um estado na costa leste australiana, acabaram por ir treinar ao mesmo centro de preparação de atletas olímpicos. Conheceram-se nos treinos e foi lá que a sua amizade cresceu, alimentada pela paixão que os unia. Desde cedo que o badminton fizera parte da vida do Emmett. O mesmo não era verdade para Leah, mas isso não diminuía o seu talento, a sua competitividade ou seu fascínio por aquele desporto.

Entre treinos, estágios e competições, a qualidade do jogo de ambos evoluiu tanto como a sua relação. Eles já faziam parte da elite nacional do seu escalão em badminton individual e estavam ainda a descobrir que se tinham apaixonado um pelo o outro quando os problemas começaram.

Emmett andava estranho. A sua postura no court sofrera ligeiras alterações para compensar as mudanças no seu corpo, afetando o seu desempenho. As suas pernas estavam mais lentas, quase pesadas demais, e ele tinha dificuldade em apanhar os volantes que apontavam às bordas do campo e que antes não apresentavam um desafio tão grande. Mas todos, incluindo o próprio, culparam o cansaço. Era normal um atleta de alto nível como ele sacrificar um pouco da sua saúde para atingir os seus objetivos. Ainda por cima, uma grande competição internacional estava a menos de um mês de distância. Era impossível o corpo dele aguentar todo aquele esforço sem dar sinais de que os seus limites físicos estavam a ser ultrapassados.

— Tira uns dias para ti — dissera-lhe o treinador um dia, depois de um treino. — Nada disto vai fazer sentido se não conseguires participar no torneio.

O jovem de 21 anos, agarrado aos joelhos, levantou a cabeça para ver o homem partir. Depois agarrou no seu cantil e arrastou-se até ao balneário sem discutir a decisão do treinador, como teria feito noutros tempos. Ainda nem tinha cumprido sequer metade da duração daquele treino quando as suas pernas começaram a tremer como se tivesse acabado de correr a maratona pela primeira vez. Mesmo agora, depois dos alongamentos e da conversa, as pernas recusavam-se a ficar quietas e o equilíbrio fugia-lhe de vez em quando.

Portanto ele descansou, treinando o mínimo possível para não perder a forma física e a técnica. Todos os colegas continuaram a simular partidas, a jogar amigáveis e a superar os seus limites enquanto Emmett mal metia os pés no centro de treinos. Quando o fazia, todos compreendiam a sua frustração. Aquele não era o momento para o seu corpo fraquejar. Mas, infelizmente, era inevitável.

Os dias de descanso passaram a voar e Emmett voltou aos treinos na mesma condição. Aliás, parecia até que estava pior: por vezes o jovem congelava, sem conseguir dar comandos às pernas, ou sentia que as mesmas tinham espasmos por conta própria. Ele tentou engolir o desconforto e contornar o problema, mas foi como se estivesse a tapar o sol com a peneira. Eventualmente, até os pais e os irmãos repararam que ele andava estranho e o treinador foi forçado a encaminhá-lo a um médico.

— Esquece o torneio. Vê o que é que se passa e volta quando estiveres recuperado. De preferência inteiro.

Emmett fez o que lhe ordenaram, compreendendo que a situação era má e que poderia colocar a sua carreira em risco se não a corrigisse. 

A verdade veio ao de cima alguns dias depois.

Era um início de noite de quarta-feira como qualquer outra. Leah tinha acabado de sair do treino e caminhava para o carro com o cabelo ainda molhado do banho. Tinha aberto a porta e estava já sentada atrás do volante, quando o telemóvel tocou. Ela inclinou-se para o banco do pendura, remexendo o bolso lateral do saco até encontrar o telemóvel.

— Emmett? — perguntou ao atender, com um sorriso involuntário no rosto. Falar com o mais novo deixava-a sempre bem disposta, mais ainda nos últimos tempos.

Mas o que lhe chegou do outro lado da linha foi o silêncio entrecortado por soluços e um choro baixo. O coração dela apertou.

— Emmett? O que é que se passa? Queres que vá ter contigo?

Ele não respondeu e ela deixou que o amigo chorasse para o telemóvel até se sentir satisfeito. Nesse meio tempo, a mente dela viajava, imaginando com preocupação o que o tinha deixado naquele estado.

— Os médicos dizem que tenho paraparesia espástica hereditária — disse por fim, surpreendendo-a. — A minha vida acabou.

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