O Jardim

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Lembro que subi de novo para meu quarto e sentei numa cadeira em frente à janela. Acho que eu estava querendo saber se existia vida em algum planeta lá no céu, ou se a nossa Terra era a única no universo inteiro. Eu, sem dúvida, era 0 único ser vivo na casa inteira naquele momento, e senti um pouco de tédio. Enquanto fiquei ali sentado, lá fora começou a clarear um pouquinho. O céu já não estava negro como nanquim; agora eslava azul escuro. A casa estava tão quieta que dava para ouvir as ondas marulhando lá embaixo, na prainha, batendo em algum barco que vinha ancorar. Na verdade, eu não tinha medo do escuro. Como vivia construindo naves espaciais e módulos lunares, estava bem acostumado a pensar no espaço sideral. Mas nesse exato momento aconteceu algo que me fez pular de susto: de repente, uma estrela cadente riscou o céu. Parecia que ia aterrissar no jardim bem na minha frente. Eu já tinha ouvido dizer que uma estrela cadente atravessa o céu cada vez que nasce alguém. Será que aquela estrela era para o meu irmãozinho? Só lembro que vi uma estrela cadente e pensei no meu irmãozinho, que estava prestes a vir ao mundo. Assim, o que realmente aconteceu não posso dizer. Mas foi então que... De repente escutei um barulhão vindo da macieira do jardim. Por um segundo achei que eram mamãe e papai voltando do hospital com meu irmãozinho. Mas não foi isso que ouvi. Debrucei-me na jane-la, espiei lá fora e vi um menininho dependurado pelo elástico da calça num galho da macieira. Era Mika! Só muito depois percebi que Mika teve uma sorte enorme. Não só caiu bem em cima daquela grande macieira, como sua calça se enganchou num galho e ele ficou pendurado de cabeça para baixo, balançando. Se tivesse batido no chão, teria se machucado muito. E se tivesse caído no canteiro de rosas da mamãe, seria pior ainda. Eu não sabia nada sobre sua nave espacial. Mais tarde fiquei sabendo que ele tinha aberto a portinhola de sua minúscula nave quando percebeu que estava se aproximando de um planeta com vida. Simplesmente chispei escada abaixo, saí correndo pelo jardim e cheguei até aquele menino pendurado na árvore. “Deve ser um sonho!”, disse Mika. Essas foram as primeiras palavras que ele disse, e achei muito estranho, pois eu eslava bem acordado. Desde essa época, muitas vezes |á parei para pensar como é que Mika sabia falar a minha língua. Ninguém sabe se há vida em algum outro lugar do universo. E se houver, ninguém sabe se os seres vivos de lá sabem falar. Mas se existirem seres vivos em outros planetas, e se alguns deles souberem falar, duvido muito que falem uma língua igual à nossa! É como o ovo de que falei no inicio. É bem provável que existam ovos em outros planetas; isso não seria tão surpreendente. Mas não há muita chance de que as aves e OS animais que saiam desses ovos sejam esses que nos já conhecemos. Por sorte, eu era (ao pequeno naquela época que nem fiquei tão espantado quando Mika falou comigo na minha língua. Quando um menino de verdade, vivinho, cai do céu no quintal da gente, não faz muita diferença a língua que ele fala. O mais espantoso é que ele seja capaz de falar! “É só um sonho!”, repetiu ele. Nessas alturas eu estava completamente desnorteado, com uma porção de coisas zunindo na minha cabeça ao mesmo tempo. Quem era esse menininho na árvore? E se era um sonho, seria um sonho dele — ou meu? E se era um sonho dele, como era possível que eu estivesse acordado? Ele continuava dependurado na árvore, balan- çando, com a calça enroscada no galho. Girava devagar, dando voltas e mais voltas. Acho que a minha cabeça começou a girar um pouco também. Eu não sabia o que dizer. Mas lembrei de algo em que pensei quando estava sentado no meu quarto, olhando as estrelas. Pensei que estava chato ficar em casa sozinho. E dali a um momento, lá estava um garotinho dependurado na macieira! Nem todos os desejos se realizam assim tão depressa... “Quem é você?”, perguntou ele. Essa mesmíssima pergunta estava na ponta da minha língua, por isso achei meio injusto que ele tivesse passado na minha frente. Afinal, não fui eu que caí de repente no jardim dele — ou no planeta dele! “Meu nome é Joakim”, falei. “E eu sou Mika. Por que você está de cabeça para baixo?” Não pude deixar de rir. E acho que ele ficou meio envergonhado, pois de repente enfiou o polegar na boca e começou a chupar o dedo feito um bebê. Isso me fez cair na risada outra vez. “É você que está de cabeça para baixo!”, falei. Mika tirou o polegar da boca e começou a esticar e abanar todos os dedos. Daí falou: “Quando duas pessoas se encontram e uma delas está de cabeça para baixo, não é tão fácil dizer qual delas está na posição certa.” Fiquei tão perplexo diante dessa resposta que não consegui pensar em nada para dizer. Ele apontou para o chão. “Mesmo assim, seria muito bom se você me ajudasse a subir até o chão deste planeta!” “Descer!”, exclamei. “Não, subir!”, disse Mika. Lembrei da pesada tesoura de jardim que mamãe usava para podar as rosas, e corri até a caixa de jardinagem para pegá-la. Achei também um velho caixote, pus debaixo da árvore e subi. Daí cortei a tira e ajudei Mika a descer do galho. Por uns momentos ele ficou com a cabeça apoiada no chão e as pernas para cima. Ainda nessa posição, conseguiu enrolar uma longa tira de pano que lhe saía da barriga. Lembro que fiquei tremendamente impressionado ao ver que ele conseguia ficar de cabeça para baixo sem se apoiar nas mãos! Seus olhos giraram depressa, depois se moveram de um lado para o outro várias vezes. Acho que ele estava tentando assimilar tudo o que havia em torno. Daí avistou o céu lá em cima, e só então abaixou as pernas para o chão. Ficou um momento de joelhos, depois levantou-se e olhou em volta, espantadíssimo.Mika apontou para a grama. “Achei que isso aqui fosse em cima.” Daí apontou para o céu. “E achei que aquilo lá fosse embaixo.” Começou de novo a ondular os dedos. Disse: “Bom, não há dúvida que eu fui subindo até bater de cabeça neste planeta!” Ficou um longo tempo apontando para o chão — e de novo para o céu lá em cima. Por fim apontou para a Lua. “Já reparei que este planeta tem uma lua. Quando vocês viajam até lá, vão para cima? Ou para baixo?” “Para cima”, falei. A primeira pessoa havia pousado na Lua poucas semanas antes, por isso eu sabia bem do que estava falando. Mika pôs o dedo na boca de novo. Acho que só tirou porque queria fazer outra pergunta. “Mas quando vocês pousam na Lua, vocês não têm que descer até a superfície?” Agora eu precisava pensar muito bem. Fiz que sim. “E quando vocês estão lá na Lua, não olham para cima para ver este planeta?” Eu mesmo nunca tinha ido para a Lua, mas tinha visto na televisão todos os programas sobre o pouso na Lua. Concordei de novo. “Sendo assim, em algum ponto no caminho entre a Terra e a Lua, o embaixo passa a ser em cima, e o em cima passa a ser embaixo. Certo?”Nessas alturas eu estava tão confuso que não sabia o que dizer. Mas refleti bem no que ele disse, e me pareceu muito certo. “Sim, acho que deve ser isso mesmo.” Ele falou então, pensativo: “Acho que encontrei o lugar exato onde acontece essa grande mudança.” De repente ele saiu dando saltos pelo jardim como um Canguru. Primeiro ensaiou alguns pulinhos cuidadosos, mas logo passou a pular o mais alto possível. Daí falou: “Este planeta não pode ser tão grande!” De novo ele tinha dito algo estranho. Será que tinha pulado tão alto a ponto de ver o tamanho da Terra? Mas ele explicou: “Bem, pelo menos não tem muita gravidade. Olha só — aqui eu consigo pular duas vezes mais alto do que lá no meu planeta. Se você fosse comigo até lá, acho que não conseguiria dar nem um pulinho!”. Isso me deu o que pensar. Não era injusto que ele conseguisse pular mais alto que eu, só porque vinha de um planeta com mais gravidade? Assim que Mika acabou de testar a gravidade, ficou de quatro no chão e examinou a grama. Primeiro cheirou, depois arrancou uns tufos verdes e pôs na boca. Sem dúvida o gosto não lhe agradou, pois logo cuspiu a grama fora. “Isso não serve para comer”, falei. Ele cuspiu de novo, várias vezes. Fiquei com um pouco de pena. Se ele estava viajando fazia meses e meses, vindo lá de outro planeta, devia estar com  muita fome! Pensando nisso, corri até a árvore e apanhei uma bela maçã do chão. Achei melhor tentar recebê-lo bem, em nome do meu planeta. “Pode comer uma maçã”, falei, oferecendo-lhe a fruta. Foi como se ele estivesse vendo uma maçã pela primeira vez. Primeiro só cheirou, depois arriscou uma dentadinha. Daí exclamou: “Nham-nham!”, e deu uma grande mordida. Perguntei: “Você gosta?”. Ele se inclinou bem para a frente, fazendo uma reverência. Eu queria saber que gosto tem a primeira maçã que alguém come na vida. Perguntei de novo: “Que gosto tem?” Ele fez outra reverência. Perguntei: “Por que você está se inclinando?”. Mika se inclinou mais uma vez. Fiquei tão perplexo que só consegui perguntar de novo: “Mas por que você está se inclinando desse jeito?” Agora foi a vez de Mika ficar confuso, Acho que ele não sabia se era melhor se inclinar mais uma vez, ou só responder. “Lá de onde eu venho”, explicou ele, “nós sempre fazemos uma reverência quando alguém faz uma pergunta fascinante. E quanto mais profunda for a pergunta, mais profundamente a gente se inclina.” Camila, essa foi uma das coisas mais malucas que eu já ouvi na vida! O que havia numa pergunta que merecesse uma reverência?“Nesse caso”, perguntei, “o que vocês fazem quando querem se cumprimentar?” “Tentamos pensar numa pergunta inteligente.” “Por quê?” Primeiro ele fez uma reverência rápida, já que eu tinha feito mais uma pergunta; daí falou: “Tentamos pensar numa pergunta inteligente, para fazer a outra pessoa se inclinar.” Essa resposta me impressionou tanto que fiz uma profunda reverência, me inclinando ao máximo. Quando levantei os olhos, vi que ele estava chupando o dedo. Houve uma longa pausa até ele tirar o polegar da boca. “Por que você me fez uma reverência?”, perguntou ele, num tom quase ofendido. “Porque você deu uma resposta superinteligente para a minha pergunta”, respondi. Daí, numa voz bem alta e clara, ele disse algo que eu haveria de lembrar pelo resto da vida: “Uma resposta nunca merece uma reverência. Mesmo que for inteligente e correta, nem assim você deve se curvar para ela.” Fiz que sim, rapidamente. Mas me arrependi no mesmo momento, pois Mika poderia pensar que eu estava me inclinando para a resposta que ele acabava de dar. “Quando você se inclina, você dá passagem”, continuou Mika. “E a gente nunca deve dar passagem para uma resposta.” “Por que não?” “A resposta é sempre um trecho do caminho que está atrás de você. Só uma pergunta pode apontar o caminho para a frente.” Achei que havia tanta sabedoria nas suas palavras que precisei segurar bem firme meu queixo para não fazer outra reverência. Nesse exato momento o sol começou a se levantar, trazendo um novo dia, Mika me puxou pela manga e apontou para aquele contorno vermelho. “Como se chama essa estrela?” “É o Sol.” Mika começou a esticar e abrir bem todos os dedos. Daí falou: “Todo sol é uma estrela e todas as estrelas são sóis. Só que nem todas as estrelas têm planetas girando em torno, portanto não há ninguém para chamá- las de sol!” Percebi que ele tinha razão, e fiquei com vontade de também falar alguma coisa inteligente: “Acho que deve dar muita solidão ser uma estrela sem ter nenhum planeta para iluminar. Se uma estrela não tem nenhum planeta aonde jogar a sua luz, então não há ninguém para vê-la nascer num novo dia!” Mika me lançou um olhar de desafio. “Você pode olhar para ela.” “Eu?” “Sim, você mesmo! Você pode olhar para uma estrela solitária como essa, quando ela se levanta numa nova noite.” Foi só aí que compreendi o que ele quis dizer. “Quanto mais escura a noite”, continuou ele, “maior a quantidade de sóis que podemos ver no céu. Durante o dia só conseguimos enxergar o nosso pró-prio sol.” E foi assim meu primeiro encontro com Mika. Ele chupava o polegar quando estava imerso em seus pensamentos, e abanava os dedos quando queria explicar alguma coisa. Sempre que eu fazia uma pergunta esperta, ele se curvava numa reverência. E quando eu respondia ele ouvia atentamente, para ver se conseguia me rebater com outra pergunta. Mas só percebi que ele era também um grande malandrinho, capaz de ficar emburrado e malhumorado, quando o telefone tocou...

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