A Cartola

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Dali a pouco fui acordado pela minha tia, que entrou no quarto. Acho que a primeira coisa que me veio à cabeça foi que a noite havia passado muito depressa. Tia Helena foi direto para a minha cama e se inclinou sobre mim. Jamais vou me esquecer desse momento. Lembro que fiquei com um medo terrível de que Mika lhe desse um beliscão na perna! “Joakim”, disse ela, com um largo sorriso. Para falar a verdade, naquele momento eu ainda não estava em condições de apreciar o sorriso radiante da tia Helena, pois nem tinha acordado direito. Esfreguei os olhos, cheio de sono. Tia Helena sentou na beira da cama e me fez um carinho na cabeça: “Joakim! Você ganhou um irmãozinho...” Isso me despertou completamente. Meu irmãozinho tinha chegado no mundo! “Eu sabia que era um menino!”, falei. “Papai telefonou do hospital”, continuou ela. “Sei que é muito cedo, mas achei que tinha que acordar você e lhe contar!” Titia disse que já estava fazendo o café da manhã, com ovos e tudo o mais. Levantei da cama e ela desceu correndo para a cozinha. Assim que ela saiu, me agachei e espiei debaixo da cama, dizendo: “Psiu!”. Mas não havia ninguém. Foi só então que notei o cobertor de Mika estendido no chão junto à cama. Dois pensamentos passaram como um relâmpago pela minha cabeça, os dois ao mesmo tempo. Mika já tinha acordado, e por isso não estava mais embaixo da cama. Mas será que ele tinha conseguido voltar para casa, lá em Eljo, antes de acordar? Creio que o segundo pensamento era o mais importante. Pois se Mika não tinha conseguido chegar em casa antes de acordar, então onde estaria ele? Mas estava faltando uma outra coisa também. Antes de conhecer Mika eu só tinha um amigo: meu coelhinho branco. E agora não o encontrava em parte alguma! Se Mika tinha levado meu coelho branco para não se sentir tão sozinho na sua viagem pelo espaço, para mim tudo bem. Afinal, agora eu tinha um irmãozinho! Fui ao banheiro me lavar e depois desci para a sala. Tia Helena folheava um jornal. Logo estávamos os dois tomando café na cozinha. Precisei pensar muito antes de pedir à titia para “cortar a cabeça” do meu ovo cozido. Era assim que costumávamos dizer na minha família, na hora do café. Algumas horas depois papai voltou para casa. Eu estava brincando com meu Lego quando ouvi a campainha tocar. Por um momento pensei em Mika — ele ficaria aterrorizado com aquele barulho! Mas daí lembrei que naquele momento ele devia estar saindo do sistema solar a toda a velocidade. Desci correndo e abri a porta. Papai se abaixou e me deu um abraço gostoso. Daí me levantou bem alto e disse: “Joakim, você ganhou um irmãozinho! Vou só trocar de camisa e escovar os dentes, e você pode voltar comigo para o hospital e conhecer o bebê.” Depois de tudo o que tinha acontecido, come-cei a chorar. E acho que papai também estava quase chorando. Até hoje não compreendo por que chorei tanto naquela hora, justamente quando estava tão feliz porque meu irmãozinho tinha nascido. Só sei que fiquei um tempo enorme chorando e soluçando alto, enquanto papai me segurava no colo e me abraçava. Demos uma carona para tia Helena até a cidade, mas ela não pôde ir conosco conhecer o irmãozinho. Naquele dia só os parentes mais próximos tinham permissão para visitar o bebê e a mamãe. Primeiro visitei a mamãe. Ela sentou na cama e me abraçou, mas mesmo assim achei que ela parecia um pouco doente. Sem dúvida estava muito mais pá- lida. Meu irmãozinho estava deitado num bercinho minúsculo, numa grande sala junto com vários outros terráqueos recém-nascidos. Fiquei um pouquinho decepcionado quando vi o bebê pela primeira vez. Era bem menor e tinha o rosto mais vermelho do que eu imaginava. E dormia tão profundamente como um ouriço-do-mar. Mas aí algo aconteceu. Aos pouquinhos ele foi acordando. Primeiro foi esticando e dobrando os dedinhos. Daí começou a chupar o polegar. Ele não sabia falar ainda, e talvez não soubesse nem pensar. Mesmo assim, era óbvio que estava espantadíssimo com o mundo aonde havia chegado. Parecia que estava tentando agarrar alguma coisa no ar, e abanava os dedos para me dizer algo importante. Lembrei-me da última coisa que Mika tinha me dito. E falei essas mesmas palavras para o meu irmãozinho: “Feliz aniversário, mano! Há um mundo intei-rinho esperando por você!” Os dias foram passando e fui mais umas duas vezes visitar a mamãe e o bebê no hospital. Chegou então o grande momento: numa bela manhã, a mamãe e meu irmãozinho voltaram para casa de táxi. Eu tinha feito um desenho lindo para ele — um desenho da Terra vista do espaço. No desenho, escrevi: EI! TEM ALGUÉM AÍ? Nos primeiros dias e semanas, o malandrinho foi o centro de todas as atenções. Às vezes ele chorava e berrava tão alto que eu tinha que tapar os ouvidos. Quando mamãe estava por perto, em geral ele logo sossegava. Assim que mamava o leite dela, parava de chorar. Mas para mim e para o papai, não era tão fácil acalmá-lo. Eu passava o tempo fazendo diversas coisas. Mas lembro que continuava também procurando meu coelho branco. Eu sabia que talvez não precisasse mais dele, agora que já tinha um irmão de verdade. Mesmo assim, tinha curiosidade de saber o que havia acontecido com ele. Às vezes eu também procurava por Mika. E continuei fazendo isso pelo resto da vida. Cada vez que me sento na Cadeira de Pedra, lá embaixo, perto do ancoradouro, ou lá em cima, no Montinho, em frente ao nosso velho marco de pedras, penso nas longas conversas que tive com Mika, o pequeno mumbo de Eljo. Bem, Camila, mas ainda tenho que lhe contar uma outra coisa. Fico meio sem graça, mas preciso mesmo lhe dizer! Não falei nada para a mamãe e o papai sobre Mika, mas disse ao papai que tinha tirado umas fotos engraçadas enquanto eles estavam no hospital. Daí lhe dei a minha máquina fotográfica e pedi que mandasse revelar o filme. Mas, Camila, você vai ter que perdoar o pior fiasco da minha vida: a máquina estava sem filme! No final de novembro chegou o dia do batizado do bebê. Já estava decidido fazia muito tempo que ele iria se chamar Mikael. Mamãe e papai achavam que esses dois nomes combinavam muito bem — Mikael e Joakim. Não me lembro exatamente quando ficou resolvido que o bebê seria batizado com o nome de Mikael. Talvez eu mesmo tenha dado um empurrãozinho na escolha do nome. Mas pode ser também que mamãe e papai já tivessem decidido antes ainda de ele nascer. Mas veja, Camila, eles não podiam ter certeza de que era um menino. Isso era algo que só eu sabia. Hoje as coisas são diferentes. Atualmente é possível descobrir, pelo ultra-som, se o bebê na barriga da mamãe é menino ou menina. Hoje em dia se pode escolher o nome da criança ainda antes de ela nascer. Depois da igreja demos uma festinha. Tia Helena também estava, naturalmente, e nessas alturas você já deve imaginar que ela é a sua avó. Ela veio com minha prima Karina, que é sua mãe. Naquela época ela só tinha catorze anos, mas para mim já parecia bem crescida. E agora ela já é mãe de uma menina de oito anos! Mas não é só isso, Camila. Comecei esta histó- ria dizendo que tinha uma notícia importante para você, e tenho certeza de que você já sabe do que eu estou falando. Na semana passada Karina me contou que está esperando um bebê para daqui alguns meses. Ela havia acabado de lhe contar. E isso me fez lembrar que prometi a você uma história. Já naquela vez que você veio passar uma semana comigo, eu tinha resolvido que um dia iria lhe contar sobre Mika. E que oportunidade melhor do que esta? Agora, Camila, você já sabe o que esperar. Karina ainda não fez o ultra-som, e não sabe se vai ter menino ou menina. Mas, de qualquer forma, você vai ganhar uma irmãzinha ou um irmãozinho. Meus parabéns! Na festa do batizado tive licença para apresentar alguns truques de mágica para os convidados. Achei que era algo bem apropriado para a ocasião, pois quando um novo ser humano vem ao mundo, isso também é uma espécie de mágica. Abracadabra! Eu tinha um jogo de mágica com uma varinha linda. E quando ia fazer um truque especialmente difícil, punha a velha cartola que o vovô usava quando queria ficar elegante. Quando comecei a escrever esta história, decidi finalizar com algumas palavras sobre a cartola do vovô. Veja bem, Camila, eu não sou o único que descende do vovô. Ele também é avô da sua mãe, e portanto seu bisavô. Esta história toda começou, na verdade, quando a vovó e o vovô se conheceram nas montanhas de Jotunheim, há muito, muito tempo. Mal sabiam eles que um dia iriam se tornar bisavós de uma garotinha, e que essa garotinha iria esperar uma irmãzinha ou irmãozinho! Mas, na verdade, foi graças a esse encontro em Jotunheim que você veio ao mundo, há oito anos. Algumas coisas já tinham acontecido, é claro, antes de vovó e vovô se conhecerem naquela escalada. Foi uma longa estrada que os levou até aquele encontro no topo de uma montanha em Jotunheim. E essa longa estrada começou, na verdade, com um anfíbio que um dia saiu rastejando do mar. E não creio que ele soubesse o que ele estava iniciando naquele momento! Esse anfíbio deu um pequeno passo em terra firme. Mas foi um passo gigantesco para a evolução. Bem, imagino que agora você deva estar querendo saber se eu realmente conheci Mika, ou se tudo aquilo foi apenas um sonho. Para essa pergunta eu faço uma reverência até o chão, pois muitas vezes já me perguntei a mesma coisa. Cheguei à conclusão de que o mais importante é que nós nos encontramos. Quando duas pessoas levantam a cabeça e cada uma sai do seu vale profundo para encontrar a outra lá em cima da montanha, pouco importa como se chama a montanha, ou de onde cada uma veio. Quando estamos no pico de uma imponente montanha, temos a sensação de estarmos no topo do mundo. E naquela noite em que meu irmãozinho nasceu — bem, eu estava no topo do mundo! Acredito que alguns encontros muito importantes da nossa vida acontecem quando estamos dor-mindo. Ao longo da nossa vida temos alguns sonhos tão vividos que parecem mais reais do que a própria vida que levamos lá embaixo, no nosso vale profundo. Meu encontro com Mika me deu vontade de ser astrônomo. E foi isso que eu fiz. Passei toda a minha vida adulta estudando o céu e o espaço. Naturalmente, muitas vezes já tirei um tempinho para espiar dentro de um carrinho de bebê. Mas, para mim, isso sempre foi bem parecido com fitar as estrelas lá no alto. Às vezes, quando olho para o céu, penso que, na verdade, o que estou procurando é Mika. Já contei tudo para você, Camila, bem como eu me lembro. Certas partes devo ter esquecido; outras talvez sejam fruto da minha imaginação. É sempre assim quando tentamos contar fatos que aconteceram há muito, muito tempo. Mas, durante toda a história, tentei ser fiel às coisas de que me lembro melhor. Acredito que toda noite nós esquecemos um pouquinho de tudo o que vimos e vivemos. Mas, ao mesmo tempo, nossa mente trabalha intensamente enquanto dormimos. E é aí que mergulhamos fundo no nosso mundo de sonhos. É como se saíssemos deste mundo e, deslizando com suavidade, entrássemos num mundo totalmente novo. Sempre que penso nisso, acho muito estranho. Quem sabe nós sonhamos à noite porque nossa mente tenta preencher o vazio deixado por tudo aquilo que esquecemos enquanto estamos dormindo. E quando acordamos de manhã, tudo o que sonhamos logo se evapora, como o orvalho ao sol da manhã. Acho que durante o dia nós vemos tantas coisas e temos tantas experiências que na nossa cabeça não há lugar para todos os nossos sonhos. Lembrar de um sonho é quase tão difícil como agarrar um passarinho na mão. Mas, às vezes, parece que o passarinho vem pousar no ombro da gente de livre e espontânea vontade.

Com carinho do seu Tio Joakim

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