A Noite

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O sol já ia mergulhando no mar por entre as rochas. De repente ouvimos uma voz aguda, mais aguda ainda que a gritaria das gaivotas: “Jo-a-kim!” Era a tia Helena. Estava correndo no jardim lá embaixo, à minha procura. “Tenho que voltar para casa correndo”, falei. “Acho que vou precisar até ir para a cama!” Minha tia Helena poderia vir me procurar no Montinho a qualquer momento, pois sabia que eu às vezes subia até lá para pensar um pouco. Levantei de um pulo e sai correndo. Daí ouvi a voz de Mika atrás de mim: “Acho que eu vou acordar daqui a pouco.” Encontrei a titia no jardim. Falou que já eram quase oito horas e que fazia um tempão que estava me procurando. Tinha lido meu bilhete e achou minha letra muito melhor. E agora eu precisava jantar e ir para a cama! Enquanto eu jantava, pensava em Mika. Onde estaria ele? Será que estava conseguindo se cuidar? E o que será que ele quis dizer quando falou que ia acordar dali a pouco? Logo depois eu já estava na cama, pronto para dormir. Eram oito e meia. Tia Helena me deu boanoite e apagou a luz. Ia dormir lá embaixo, no sofá da sala. A última coisa que ela disse antes de descer foi: “É hoje à noite que sua irmãzinha ou irmãozinho vai chegar!”. Daí comecei a pensar no irmãozinho. Eu tinha certeza de que ia ser menino. Bem, pelo menos eu já tinha uma boa prática de falar sobre o mundo! Pois era eu que ia ter que explicar ao meu irmãozinho como foi que tudo come- çou a existir por aqui. Acho que dormi um pouco. De repente acordei com umas batidinhas na janela. Era Mika! Tinha conseguido subir no telhado. Saí da cama e abri a janela, sussurrando: “Psiu!”. Ele cochichou: “Vamos olhar as estrelas?”. Fiquei meio preocupado. Minha tia poderia subir até o quarto a qualquer momento. Mas por fim vesti minha roupa, calcei os chinelos, pulei a janela e subi no telhado com ele. Escalamos até bem lá em cima no topo. A noite estava meio fria, e sentamos bem juntos um do outro. Era mais uma noite toda iluminada de estrelas. Mika apontou para uma estrela que cintilava com brilho especial e falou, solene: “Quem sabe aquela estrela lá em cima é o meu sol?” “Ou lá embaixo?”, falei. “Afinal, você foi viajando para cima até bater com a cabeça neste planeta. Não é mesmo?” Eu não conseguia parar de pensar no fato de que Mika tinha saído de um ovo. E também não conseguia compreender como ele era capaz de ler meus pensamentos. Falei: “Eu nasci neste planeta há oito anos. E você, há quanto tempo você saiu do seu ovo lá em Eljo?” Ele fez uma reverência para essa pergunta. “Há exatamente um ano.” “Feliz aniversário!”, exclamei. “Só que um ano em Eljo é bem mais tempo do que um ano na Terra. Tudo depende da velocidade com que o planeta gira em torno do seu sol.” “A Terra leva trezentos e sessenta e cinco dias e um quarto para dar a volta em torno do Sol”, falei. “Por isso, temos que acrescentar um dia extra a cada quatro anos, para arredondar a conta.” Eu já sabia que em outro planeta um ano pode ser muito mais curto ou mais longo do que aqui. “Nossos dias também são mais longos que os de vocês”, disse Mika. “Parece que faz pouco tempo que o sol se levantou, trazendo um novo dia. E agora já é de noite outra vez!” “O dia tem vinte e quatro horas”, expliquei, “porque a Terra leva vinte e quatro horas para dar um giro.” “Horas?”, perguntou Mika. De repente percebi que essa idéia das vinte e quatro horas não passa de algo que nós inventamos aqui no nosso planeta. Poderíamos muito bem ter resolvido que cada dia tem de2 horas, e cada hora cem minutos. Expliquei: “Nós dividimos o dia em vinte e quatro horas. Cada hora tem sessenta minutos, e cada minuto é dividido em sessenta segundos”. “Compreendo”, disse Mika, ouvindo atentamente. “Mas quanto dura um segundo?” “Um!... Dois!... Três! Depois de cada número fiz um intervalo de mais ou menos um segundo.” Mika ficou pensando muito tempo, e logo começou a esticar os dedos. Percebi que ele estava raciocinando intensamente. Por fim disse: “Nesse caso, no meu planeta você teria um ano e oito dias.” Quer dizer que eu era oito dias mais velho que Mika! Achei essa última conta a mais fácil de fazer. As estrelas brilhavam como agulhas pontiagudas no céu noturno. “Por que você veio até aqui?”, perguntei então. “Para encontrar você. Ou você acha que eu caí no seu jardim por acaso, justamente quando você estava sozinho em casa, esperando chegar um irmãozinho?” Achei que essa era uma boa pergunta, e fiz uma profunda reverência. Mas ainda havia alguma coisa impedindo que todas aquelas peças se encaixassem. “Mas tudo isso é só um sonho”, ele repetiu. “O quê?” Mika respondeu, sempre ondulando os dedos: “Eu sonhei que saí voando pelo universo na minha nave espacial. Durante muito tempo não vi nada além de estrelas e galáxias. De vez em quando via de relance algum cometa. Mas um dia entrei no sistema solar. Primeiro passei por um planeta pequeno e frio, lá longe. Daí passei por uns planetas bem grandes, com luas e grandes anéis girando em suas órbitas. Foi aí que percebi à distância uma pequena pérola verde-azulada. Parecia aqueles pirulitos com manchas de várias cores. Será que ali existia vida?” “Era a Terra!”, falei. “E não é um sonho!” “Mas eu sonhei que estava vendo a Terra. Fiquei tão curioso que abri a portinhola da nave e gritei para a noite negra: ‘Ei! Tem alguém aí? Ou é tudo vazio e deserto?’.” Tentei imaginar a cena.“Dali a um momento caí pela portinhola afora e saí voando numa tremenda velocidade, rumo a este planeta. Eu gritava: ‘Socorro!’, mesmo sabendo que não havia ninguém para me ajudar.” “Você deve ter sentido um medo louco!” “Senti mesmo. Mas dali a pouco estava dependurado numa macieira, pertinho do chão. E o resto da história você conhece.” Sem dúvida. Eu tinha visto tudo com meus próprios olhos. E foi essa, Camila, a história que contei a você. “Eu sabia que era um sonho, o tempo todo”, disse Mika. “Só que era um sonho que não acabava mais!” “Quem sabe você também sonhou que saiu de um ovo, há muito tempo?”, interrompi. “Não! Tenho tanta certeza disso como tenho certeza de que nós dois estamos sentados aqui no telhado, olhando para o céu.” Por algum motivo, essa resposta não me satisfez totalmente. Pensei um pouco e falei: “Se a sua viagem pelo espaço até este planeta foi apenas um sonho, então o fato de estarmos sentados juntos aqui no telhado deve ser sonho também. E se for assim, um de nós está sonhando!” Ele concordou: “Todos os planetas têm dois lados. E os dois lados não podem estar de frente para o sol ao mesmo tempo. A mesma coisa acontece com os nossos sonhos. A pessoa que sonha e a pessoa com quem ela está sonhando nem sempre estão acordadas ao mesmo tempo.”“Nesse caso”, falei, “será que sou eu ou é você que está sonhando?” Ele deu de ombros. “Não faz diferença! O mais importante é que nós nos encontramos, no topo daquela montanha bem alta. Sabe, não é sempre que as pessoas sobem até lá!” Refleti longo tempo sobre isso, com muita concentração. Daí falei: “Mas se sou eu que estou sonhando com você, então você não poderia existir antes de eu começar a sonhar. E assim que eu acordar, você vai desaparecer!” Daí Mika disse algo que deve ter sido a coisa mais importante da noite. Espalmando a mão e ondulando os dedos mais do que nunca, perguntou: “Como você tem tanta certeza de que é a única pessoa que está sonhando comigo?” Essa pergunta me fulminou como um raio. Só consegui dar de ombros. Ele então fez outra: “E como você pode ter certeza de que não vai sonhar comigo outra vez?” Nem sequer tentei responder a essas perguntas. Parece que elas davam um significado totalmente novo para todas as nossas conversas. Foi só aí que percebi que estava tremendo de frio. Já tinha também começado a bocejar. Mas não queria me separar de Mika, e falei: “Tenho um plano!” Ele me olhou com uma expressão vazia, embotada. “Você tem todo este planeta...”Agora fui eu que comecei a abanar os dedos. Falei: “Estou querendo dizer que tive uma idéia brilhante.” “Sorte sua...” Fiquei com medo de que ele já estivesse come- çando a acordar. Se isso acontecesse, será que ele ia simplesmente desaparecer bem diante dos meus olhos? Contei logo minha idéia: “Você pode dormir debaixo da minha cama.” Acho que ele ficou bem contente com o meu oferecimento. Gentileza e consideração devem ser coisas que agradam em qualquer lugar do universo. Mas também havia algo triste na sua voz quando falou: “Bom, pelo menos posso ficar junto com você, perto da sua cama.” Pulamos a janela de volta para o meu quarto. Mika disse: “Deve ser gostoso morar numa casa tão bonita.” Olhou ao redor do quarto como se fosse a primeira e a última vez. Daí disse: “E tenho certeza de que vai ser divertido ter um irmãozinho.” No pé da cama havia sempre um cobertor extra, que eu punha por cima do meu acolchoado quando fazia frio. Estendi esse cobertor no chão, debaixo da minha cama. “Você pode dormir aqui. Mas tem que me prometer que se minha tia entrar, você fica quietinho como um ratinho!” Mika estava girando meu globo terrestre. Dava impulso e o fazia rodar cada vez mais rápido. “Não vou dar nem um pio!” Olhei para o globo, que dava voltas e mais voltas. “Já faz mais de doze horas que nós nos encontramos.” “Ou apenas alguns minutos”, ele replicou. “Bem, para mim parece que faz muitas horas. Quando nós acordarmos amanhã cedo, vamos completar um dia inteiro.” De repente ele parou o globo, com um gesto brusco do dedo. Olhou para mim e disse: “Quando nós viajamos para longe, vamos para fora. E quando sonhamos, viajamos para dentro. Quem sabe seja impossível viajar em duas direções ao mesmo tempo?” Mika disse isso com tanta intensidade que suas palavras ficaram guardadas dentro de mim até hoje. Nunca deixo de ficar extasiado ao contemplar o espa- ço. Mas também nunca deixo de ficar maravilhado ao lembrar que tenho uma cabeça e uma mente que fazem de mim o meu próprio universo, único e pessoal. Mika se enfiou debaixo da cama e se deitou no cobertor. “Boa noite”, falei. “Ou bom dia!”, respondeu ele. “Afinal, a Terra continua girando sem parar.” Deitei a cabeça no travesseiro. De repente ouvi uma vozinha murmurando lá no chão:“Foram necessários milhares de milhões de anos para criar seres como nós. Tudo começou com alguns organismos bem simples no mar. E agora temos uma cabeça capaz de pensar e sonhar, lembrar e esquecer.” Por um momento o silêncio foi total. Daí, numa voz um pouquinho mais alta, ele disse: “Eu saí de um ovo e você já nasceu vivo. A partir de algumas coisinhas minúsculas, surgiu uma compreensão de todas as coisas.” De novo o silêncio foi quase total, mas ouvi Mika respirando profundamente. De repente ele saiu engatinhando lá de baixo, apoiou-se na beira da cama e disse: “Quem sabe é hora de esquecermos a casca do ovo! Esquecer o leite e a barriga! E os dinossauros também. Nós dois já nos libertamos de tudo isso. Feliz aniversário, mano! Há um mundo inteirinho esperando por você!” Essas foram as últimas palavras que ouvi de Mika. Acho que depois disso ele rolou de novo para debaixo da cama, e logo estávamos os dois dormindo profundamente.

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