O Ovo

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Assim que a tia Helena saiu para fazer as compras, pus as duas metades de panqueca num prato e fui correndo até o galpão das bicicletas, encontrar Mika. Mas o galpão estava vazio! Corri em volta da casa e por fim dei com ele sentado no galinheiro, segurando um ovo que a galinha tinha acabado de botar. “Ela botou um ovo!”, exclamou, como se isso fosse uma coisa muito especial e misteriosa. Em geral nós criávamos só três ou quatro galinhas, mais por divertimento. Mas elas nos davam os ovos que usávamos para fazer panquecas e coisas assim. “Cuidado!”, avisei. Ele concordou, solene: “Já sei, é porque desse ovo pode sair um filhote!” “Um pintinho. As aves se desenvolveram a partir dos répteis, milhões de anos atrás, assim como os mamíferos.” Mika apontou para uma galinha. “De quanto em quanto tempo elas botam ovos?” Fiz uma reverência especial para essa pergunta. “Quase todo dia. Nenhum réptil, nem as aves selvagens fazem isso. Essas em geral só botam ovos uma vez por ano!” Diante disso ele ficou tão espantando que não pude deixar de rir. Expliquei: “Durante milhares de anos os seres humanos foram conservando as galinhas que botam mais ovos. E assim também conservamos as vacas que dão mais leite, os carneiros que têm mais lã, os cavalos mais fortes e mais rápidos. Esses que nós criamos se chamam animais domésticos”. Mika pôs o ovo no chão com todo o cuidado e veio me encontrar, saindo do galinheiro. Voltamos para a casa e entramos na cozinha. Mika notou algumas cascas de ovo num prato, deixadas pela tia Helena quando tinha preparado as panquecas. Mas ficou tão perturbado com as cascas que tapou os olhos para não ver. Mesmo assim, logo depois ele estava acomodado na mesa da cozinha comendo sua panqueca. Acabou se lambuzando todinho de geléia de uva, até ficar num estado deplorável. Quando terminou de comer as duas metades, levei-o até o banheiro. Subi num banquinho e pus Mika dentro da banheira nova do bebê. Peguei minha esponja e comecei a lavar seu rosto e a barriga. Foi só aí que eu reparei! E guardei essa grande notícia para lhe contar agora: Mika não tinha umbigo! Percebe, Camila? E você imagina o susto que eu levei? Todos os seres humanos têm um umbigo no meio da barriga. Isso porque, quando ainda estão dentro da mãe, recebem o alimento através de um tubo ligado ao umbigo, chamado cordão umbilical. Mas Mika não tinha umbigo. Sendo assim, como será que ele tinha nascido? Fiquei tão espantado que não sabia o que dizer. Tratei de secá-lo com a toalha e ajudá-lo a descer da banheira. Mika saiu correndo e entrou no quartinho ao lado — o quarto do meu futuro irmãozinho. Apontou para o berço onde o bebê ia dormir, e num instante se enfiou lá dentro. Para ele entender o que era um berço, comecei a balançá-lo devagarzinho, para lá e para cá. Mika riu, na maior felicidade, e logo pulou fora do berço. “Vou ganhar um irmãozinho”, expliquei. “Ele vai dormir nesse berço.” “Por mim tudo bem”, respondeu Mika, parecendo um pouquinho, só um pouquinho, chateado. “Tenho que voltar para casa antes de acordar.” Olhou ao redor do quarto, intrigado, e disse: “Não estou vendo nenhum ovo!” Nesse momento, algo começou a clarear na minha mente. Sim, Camila, acho que você sabe o que é — está ficando quente! Descemos para a sala. Na prateleira debaixo da mesinha de centro havia um grande álbum de fotografias. Abri o álbum em cima da mesa e sentei no sofá. Logo Mika veio sentar-se ao meu lado. “Isto aqui é um álbum de fotografias”, falei. Ele me olhou, sério. Era óbvio que não tinha a menor idéia do que era um álbum de fotografias. “Espera um minuto”, falei. Subi para o quarto e peguei minha máquina fotográfica. Lembro até que verifiquei o flash para ver se estava funcionando. Daí desci correndo e tirei uma foto de Mika. Procurei mostrar bem a sua barriga na foto, para depois todos verem que ele não tinha umbigo. “Clique!”, fez a máquina — e foi um “clique” inesquecível. Se Mika saísse correndo de repente, pelo menos eu já tinha uma prova concreta do nosso encontro.Mika se assustou com o flash, e tive de lhe fazer o famoso carinho na nuca para ele não chorar. Dali a pouco abri o álbum de fotos na primeira página e falei: “Este álbum está cheio de fotos da minha famí- lia, fotos que nós tiramos um do outro. Logo mais vou pôr uma foto sua aí também.” Mostrei a ele as fotos de mamãe e papai quando eram namorados. Daí vimos uma foto da mamãe com a barriga bem grande, quando eu estava para nascer. “Eu estou dentro da barriga dela. Isso foi pouco antes de eu sair.” Sim, algo começava a clarear na minha mente. E era evidente que Mika também tinha compreendido alguma coisa. Falou baixinho: “Filhotes vivos...” Fui folheando o álbum e encontrei uma foto que papai tirou quando eu estava mamando no peito da minha mãe: “Esse aí sou eu. Quando eu sentia fome, tomava leite da minha mãe.” Mika arregalou os olhos: “Leite?”. Não pude deixar de rir, mas agora de mim mesmo. Pois se Mika não sabia o que era um mamífero, naturalmente não saberia também o que era leite! “É a comida dos bebezinhos”, falei. Ele desviou os olhos do álbum. Acho que sentiu um pouco de repugnância por essa foto onde eu aparecia mamando no seio da mamãe. “Então como se explica”, perguntou ele, “que você e eu sejamos tão parecidos?”Pois eu vinha refletindo justamente sobre isso! Parecia que Mika tinha tirado a pergunta da minha boca, por isso nem me dei ao trabalho de fazer uma reverência. Se Mika não era mamífero como eu, então como era possível que nossa aparência fosse tão semelhante? Eu já devia ter pensado nisso muito tempo antes. Mika tinha vindo lá de um outro planeta no espa- ço sideral. Mas se ele tinha vindo de um planeta com uma história totalmente diferente da nossa, como era possível que fôssemos tão parecidos? Pois muito bem, Camila, essa charada acabou sendo resolvida pelo próprio Mika. E já, já vou esclarecer tudo para você também! Já eram cinco horas da tarde. Tinham se passado mais de doze horas desde que papai havia entrado no meu quarto para me acordar. Eu sabia que tia Helena estava para voltar das compras a qualquer momento. Peguei uma caneta e um pedaço de papel e escrevi um bilhete: Querida Tia Helena, Desculpe, mas preciso sair para descobrir uma coisa importante. Tem algo a ver com o peixe e a farinha. Mas tem a ver com o meu irmãozinho também. Volto na hora de dormir. Beijos, Joakim Mamãe e papai costumavam deixar bilhetes assim um para o outro, quando um dos dois precisava sair para fazer algo importante. Mas acho que essa foi a primeira vez que eu mesmo escrevi um bilhete. Peguei Mika pela mão e saímos. Subimos na colina que havia em frente de casa e sentamos num monte de pedras, um marco que papai e eu tínhamos erguido fazia muito tempo. Mamãe e papai chamavam essa colina de Montinho. Dali do Montinho podíamos ver a casa e também o mar até lá longe, com suas ilhotas e recifes. As gaivotas soltavam seus gritos agudos — o que era ótimo, pois só elas seriam capazes de abafar os gritos de Mika se ele começasse outra vez! Quando estávamos sentados na Cadeira de Pedra, lá embaixo, perto da praia, eu tinha contado a Mika sobre o mar e a evolução da vida na Terra. Agora era a sua vez de me contar como era a vida lá no planeta dele. Ele continuava abanando os dedos, e de vez em quando chupava o polegar. Mas assim que come- çou a contar sobre a vida no seu planeta, até parecia meu pai falando. “Venho do planeta Eljo”, disse Mika. “Lá também a vida começou no mar, há bilhões de anos. Exatamente de que maneira isso aconteceu, ninguém sabe. Mas hoje existem muitas espécies diferentes de animais em Eljo.” Igualzinho aqui, pensei. Embora eu e Mika fôssemos de planetas diferentes, estávamos falando da mesma coisa. Ele continuou: “Há centenas de milhões de anos, existiam alguns animais em Eljo que se pareciam um pouco com os dinossauros daqui. Eles também botavam ovos de casca dura. Nós chamamos esses animais de mumbos. Mas lá não temos nenhum animal que dá à luz filhotes vivos”. “Nesse caso, de onde vêm as pessoas como você?” Mika estava tão ansioso para falar que nem teve tempo de fazer uma reverência para a minha pergunta. Respondeu, sempre mexendo os dedos: “No nosso planeta não aconteceu nenhuma grande mudança que causasse a morte dos mumbos, portanto eles continuaram evoluindo. Hoje alguns de nós sabem falar e também fazer perguntas inteligentes sobre o espaço sideral. Mas eu também sou um mumbo...” Imagine, Camila: Eu também sou um mumbo! Mika continuou: “Antes de vir ao mundo eu estava dentro de um ovo, que minha mãe e meu pai punham numa almofada grande, num quarto bem aquecido. Eles nunca se atreviam a deixar o ovo sozinho quando queriam sair de casa. Sabe, lá em Eljo existem uns animais maldosos que vivem de roubar os ovos dos outros. Por isso, eles punham o ovo num carrinho e me levavam para todo lugar. Diziam que o ovo era o seu ‘tesouro’, e não eram os únicos pais que davam esse nome ao seu ovo. Em Eljo, um ovo é considerado o tesouro mais valioso que existe.” Eu tinha conversado com Mika quase o dia todo, mas só agora compreendia de que maneira ele tinha nascido. Ele continuou: “Meus braços e pernas logo ficaram tão fortes que o ovo começou a rachar quando eu dava pontapés ou mexia os braços. Durante esse período, todos os meus parentes ficavam sentados em volta do ovo, observando com a maior atenção”. Respirei fundo e soltei o ar todo de uma vez. Falei então: “E aí... você... saiu do ovo?” Ele fez que sim. “Quer dizer, não me lembro de absolutamente nada. Mas acho que fiquei ofuscado com o brilho da luz. Dentro do ovo o escuro era quase total. E acho que também quase não entrava nenhum som ali. A única coisa que eu fazia era ficar enroladinho, chupando os dedos.” Camila, você está prestando atenção? Isso que Mika estava dizendo me parecia emocionante e misterioso. Mas, na verdade, não era mais misterioso do que tudo o que eu tinha lhe contado sobre a história da Terra e sobre o meu irmãozinho que estava para nascer. E só naquele momento entendi por que Mika achava tão difícil compreender o que era um mamífero. O mais estranho, realmente, era a nossa semelhança. Com um passado tão diferente, como se explica que nós dois acabamos sendo tão parecidos?

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