Uma bela e solitária Vættir

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    Madeira por toda parte

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    Madeira por toda parte. No teto, no chão — que geralmente é de terra coberta com palha seca —, na parede, na cama que se encontrava. A textura da coberta, um pelo de carneiro limpinho, fez com que Jullit bocejasse. Ergueu o tronco, espreguiçou-se e ficou confusa. Bem próximo tinha uma sala, formada por assentos revestidos por pele de animais e uma espécie de mesa que mais parecia um enorme toco que uma vez fora a árvore mais velha da história. A nordeste, um simples espaço para preparar alimentos. Na sua frente, um hall não muito largo e bastante confortável. Casacos pesados estavam pendurados em um cabideiro móvel e ali, quase encostado, armários que contêm segredos sussurravam para que a jovem levantasse e fosse até eles. E ela foi fazê-lo, mas aí se deu conta de sua nudeza. Segurou a coberta nos seios, olhando em tudo que é canto à procura de suas vestimentas.
    Foi então que a porta se abriu, o vento batendo-a sem parar contra a estrutura da cabana. Alguém entrou, chacoalhando-se para se livrar do frio e jogando no chão uma carga. Jullit, ao ver que o sujeito tirou seu capuz de lã, voltou para a cama, fingindo dormir profundamente.
    Seus ouvidos estavam atentos, capturando passos e identificando mais ou menos a localização do desconhecido. Escutou claramente que tirava seus sapatos enquanto estava sentado na sala sem divisões, voltado na direção dela. Jullit torcia para que não olhasse suas órbitas se movendo por debaixo das pálpebras, segurando a respiração e se mantendo imóvel.
    Com os passos agora longes, arriscou espiar, vendo de relance cabelos cumpridos e escuros de costas colocando lenha debaixo de um caldeirão, o fogo iluminando todo o ambiente. Frisou no hall, no cabide e na porta e, sem pensar duas vezes, disparou, arrancando uma cobertura de linho e vestiu, a mão trêmula no puxador da porta prestes a abrí-la.
    Em um segundo, um estrondo fez a tábua de madeira retangular entreaberta se fechar. Uma luva de couro espremeu a mão de Jullit no puxador, quebrando-o e perfurando a pele da jarl com mil pequenas lascas. A jovem suspirou de dor. E então aquela pessoa bruta a virou e Jullit viu seu rosto. Sua face era em formato de coração, seus olhos verdes claros e a junção de suas sobrancelhas finas e escuras, de seus lábios de um tamanho ideal e da pontinha de seu nariz levemente caída criavam uma imagem que uma vez vista jamais poderia ser esquecida.
    A encarada, as íris verdes perfuravam seus sentidos sem pudor. Sentiu-se fraca, com uma dor de cabeça e enxaqueca terríveis, a ponto de abrir a boca tentando aliviar a pressão. O couro suavizou a pegada, dando chance para que aquela dor excruciante lembra-se Jullit de que a palma de sua mão existia e podia lhe causar sofrimento. Aquela mulher a deixou mediante uma linha tênue de pavor e encantamento.
    — Salvo sua vida e na primeira faísca de tomada de sapiência pega suas pernas e tenta fugir como se eu fosse os homens que lhe perseguiam? Que falta de consideração, não acha?
    O engraçado é que, antes do medo, Jullit achou belo o sotaque que só podia ser irlandês. Sua voz era agradável, mesmo em tom raivoso. A mulher continuava a encarando, desviando lentamente a atenção para suas próprias mãos.
    — Droga... Sangue.
    A mulher deu alguns passos cautelosos para trás e Jullit rapidamente deduziu ser uma fobia.
    — Não saia daí, ouviu? — A jovem assentiu, as lágrimas caindo com o movimento frenético de cabeça.
    Jullit aguardou a mulher puxar de uma prateleira no alto uma caixa pequena contendo sebo de carneiro — incomum naquela época do ano —, tiras finas de couro e uma espécie de garrafinha com ervas flutuando junto a uma água amarelada. Voltou até a jarl, pegando-a pelo braço e levando até uma cadeira. Logo mais a mulher estava sentada na mesa em sua frente enquanto avaliava o estado de sua mão. Virou-se para trás, pegando também dentro da caixa um tipo de puxador de ferro semelhante a cabeça de uma formiga saúva que Jullit não tinha percebido antes e levou até os dedos dela, que recuou.
    — Se você se mexer eu não vou conseguir tirar nem as pequenas, nem as grandes farpas. Quer continuar sentindo dor? — a pergunta era simples, mas cheia de significados.
    — Não — emitiu a negação com um fio de voz.
    — Então fique quieta.
    Levou o instrumento perto da falange do dedo médio, puxando com cuidado um pedaço de aproximadamente um centímetro afundado na sua pele. Jullit se contorceu na cadeira. Em seguida, retirou mais dois pedaços do mesmo tamanho da cabeça dos metacarpos. Aquilo era mais angustiante quando se via e, toda vez que saiam, abriam passagem para mais gotas de sangue. E, finalmente, tirou umas cinco farpas menores da sua palma, que estavam ao redor de um corte maior e mais profundo.
    — Shh... Prontinho. O pior já passou. — A mulher se virou, pegando a garrafa e destampando. — Vai limpar as feridas para não infeccionar — explicou antes de despejar e segurar o pulso de Jullit enquanto ela gemia de dor. Aquilo ardeu como o ácido que pingava no rosto do deus das travessuras.
    Retirou as luvas de couro uma por uma, pegando a mão ferida com delicadeza.
    — E para parar o sangramento desse cortezinho daqui — a ponta dos dedos frios dela fizeram a ardência parar por um breve momento —, vamos ter que enfaixar por garantia.
    Quando a mulher foi se virar novamente para pegar a tira, a jovem catou o instrumento pontudo e colocou rente ao pescoço daquela desconhecida.
    — Quem és tu? — Jullit esbravejou, suas mãos tremiam com a dor.
    — Abaixe a pinça que eu contarei.
    A Sture ponderou, distraindo-se por um segundo, o suficiente para que a mulher tirasse o objeto de suas mãos e segurasse seu rosto com firmeza. Tentou tirar os braços da mulher, tentou se soltar, contudo nada do que fazia adiantava de algo. As mãos que a emolduravam, ela jurou que esmagariam sua face. Surpreendeu-se com os dedões que limparam suas lágrimas, possibilitando-a ter a visão de olhos azuis mirabolantes.
    Ela queria comentar a primeira impressão que teve deles, de um verde vívido, porém elas duas não tinham esse tipo de relacionamento... ainda.
    A mulher juntou as sobrancelhas. Por acaso isso é chateação? Encolheu os lábios e disse com sotaque carregado:
    — Às vezes não consigo controlar minha força e acabo ferindo as pessoas. Desculpe.
    Soltou o rosto abalado de Jullit, pegando as tiras, esfregando nelas o sebo e pediu permissão com o olhar para enrolar e apertar no corte.
    A jovem deu uma arfada e com esse último som a mulher ficou a observando de perto, o que a constrangeu na hora. Sentindo uma corrente de ar perpassar por todo seu corpo, a jovem olhou para baixo. Pegou a manta que vestia e fechou, cobrindo seu corpo nu.
    — Não há porque ter vergonha, nós duas somos os seres mais incríveis da natureza.
    Aquele argumento não amenizou a vergonha de Jullit. Sim, as duas eram mulheres, porém a jovem nunca a vira antes e seria normal o desconforto em mostrar partes de si daquela forma. Seu cérebro só não fritou de quentura, porque a mulher foi respeitosa o tempo todo, mantendo o olhar do queixo dela para cima.
    — Sou péssima com apresentações como pôde perceber, então vamos logo com isso. Sou Katherine Elizabeth McGrath, filha de simples fazendeiros irlandeses que foram mortos junto a todos da minha antiga aldeia por uma terrível vingança dos deuses. Nossa, ainda bem que por aqui as pessoas conseguem manter o que comem em seus estômagos.
    Tantas informações assim são difíceis de se assimilarem de uma vez, mas graças às habilidades linguísticas que a diplomacia lhe deu, Jullit conseguira entender a irlandesa.
    — O que faz tão longe de casa, Katherine?
    — Por favor, chame-me de Katie — corrigiu, descendo da mesa e indo conferir se o fogo ainda queimava.
    — Katie, tu planejas me soltar? — perguntou enfim.
    — Está vendo alguma corda lhe prendendo os pulsos? — De costas, ainda sim sua rudeza era brutal. — Vá se quiser, mas que fique claro que a nevasca da qual lhe salvei piorou três vezes mais e não irei atrás de gente estúpida o suficiente para se aventurar num clima desses.
    — E quando é que poderei retornar?
    Agachada, Katie olhou de soslaio, voltando a revirar a lenha com um pedaço de ferro.
    — Não vais me responder? — Jullit insistiu.
    — Como disse mesmo que se chama? — Katie mudou de assunto, levantando e tirando de dentro do caldeirão o vestido verde ensopado com água fervente e pendurando num varal. — Amanhã estará limpo e seco.
    A mais nova claramente estava dividida quanto a achar que Katie era boa, ou fingia ser de início para depois a devolver ao seu pai em troca de uma boa recompensa.
    — Jullit Flett Sture, a filha...
    — ... mais velha da família Sture — completou. Estava agora esticando o vestido, espremendo o tecido. — Diga-me, Júlia, o que em nome de Odin faria com que uma jarl de nome fosse caçada por um monte de karls?
    — Meu nome é Jullit — corrigiu-a no mesmo instante, semicerrando os olhinhos para que fosse levada a sério.
    — Foi o que eu disse.
    Júlia, quer dizer, Jullit revirou as órbitas, cansada demais por ter de encarar afrontas dessa tal McGrath depois do dia horrível que teve. Respirou fundo, aninhando-se ao linho da roupa "pegada emprestada".
    — Meus pais queriam me casar com um brutamontes abominável para salvar nosso povo de morrer de fome.
    — Deixa eu adivinhar — interrompeu Katie. — Você fugiu da cerimônia e o noivo colocou seus cães farejadores atrás de você.
    — Mais ou menos isso.
    Aquele foi o primeiro sorriso que sua estranha salvadora a lançou. Notou que seus dentes eram brancos, brancos, brancos e dois deles destacavam-se perante os outros.
    — Falando em fome, quer comer alguma coisa? — oferece Katie, levantando e indo até a bolsa que trouxe consigo quando adentrou. Tirou de lá um pequeno saquinho e entregou aberto para Jullit. — Espero que goste de amoras.
    Com certa suspeita, olhou dentro do saco antes de colocar a mão ali.
    — O único perigo que essas frutinhas representam é não saciarem toda sua fome — brincou, tirando de sua bolsa também um pequeno coelho marrom  abatido com as patinhas amarradas. — Fico arrasada de ter que sacrificar a vida desse bichinho lindo para continuar viva, você não sente o mesmo, Júlia?
    A jovem assentiu, sentindo um azedo na boca. Seriam as amoras ou o fato de o sotaque fazer Katie pronunciar seu nome erroneamente?
    — Gosta de sopa de coelho?
    Jullit murmurou um "aham".
    — Você só sabe mexer a cabeça para cima e para baixo? — Katie zomba e Jullit meneia para esquerda e para direita, fazendo-a rir. Como é possível uma risadinha entorpecer um ferimento? Certos fenômenos não têm explicações. — Muito engraçadinha. Bom, se eu fosse você, deitaria na cama e tiraria um cochilo. Prometo te acordar quando a comida estiver pronta.
    Levantar daquela cadeira e caminhar até a cama para então se cobrir pareceu um exercício físico intenso, tanto que, assim que o fez, ferrou no sono, deixando sua guarda baixa para aquela pessoa que acabou de conhecer poder fazer o que bem entendesse com ela. Com a sorte da pequena Sture, era bem capaz que ela nunca mais acordasse.

❝𝐅𝐫𝐢𝐚 𝐜𝐨𝐦𝐨 𝐅𝐨𝐠𝐨⚢❞Onde histórias criam vida. Descubra agora