O Olho e O Corvo

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    Seus pés estavam no automático

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    Seus pés estavam no automático. Jullit Sture estava voltando contra sua vontade. Ela já sabia o que aconteceria se fugisse, sabia que teria de voltar. Por que não a foram procurar antes? A resposta é simples. Sem a necessidade de tratar com algum povo de língua estrangeira ela não servia para mais nada, ou ao menos era o que seus pais achavam até terem de lidar com um problema que foram eles mesmos que causaram, mas jamais admitiriam. Viver as duras custas de pessoas interesseiras e que lhe enxergam como um instrumento para se manterem no poder é a questão que assombra a jovem desde seu nascimento.
    Quando as duas alcançaram a aldeia, os karl estavam correndo desesperados de um lado para o outro. A maioria era gente que cuidava da plantação, por isso havia poucos guerreiros treinados em combate e os Leif sabiam disso, mesmo assim estavam marchando para conquistar uma terra que não tinha proteção alguma, um bando de sem vergonhas.
    Os poucos homens que sabiam lutar pegaram armas e escudos, estando dispostos a darem suas vidas para proteger suas famílias. E Jullit, vendo toda aquela confusão — mães com bebês chorando no colo, adolescentes pegando em instrumentos mortais e indo para a linha de frente defender os portões de lanças, os maridos escondendo as esposas e as filhas em algum abrigo —, não poderia simplesmente os abandonar. Eu sou a única que pode evitar que todos morram e o farei de uma forma ou outra, pois esses são karls da aldeia Sture e são de minha responsabilidade. Casarei-me com Björn e tudo será resolvido. A jovem se importava mais com o povo que seus pais, não que a compaixão deles mudasse algo.
    — Por aqui, senhorita Jullit! — Ouviram a voz fina de Syfra vinda da casa ao centro. A morena balançava frenética as mãos e não sorria exatamente. Ela tinha o cenho tenso e sua vestimenta não parecia ter sido trocada desde o dia em que Sture desapareceu. — O senhor e a senhora Sture estão lhe esperando!
    Assim que colocaram os pés no chalé da família fundadora, Jullit pedira para que Syfra levasse Morgana e a desse um banho quente, pois a coitada mal ficava de pé. Bateu nas saia e limpou a neve das vestes, erguendo o olhar e notando que tinha algo de errado. Sua mam e seu athair estavam sentados nos seus tronos esculpidos em pedra, mas os narizes não estavam empinados e eles tinham zero postura. Um tapete de pele de urso cobria o chão aos seus pés e Jullit delirou por um instante, vendo o animal mexer e rosnar para ela. Caminhadas forçadas como a que acabara de fazer fizeram de seu cérebro uma batida de miolos. Ela juntou as sobrancelhas com as expressões inquietas que eles faziam e por um momento a presença de Björn Leif passara despercebida. O homem barbudo desencostara do pilar de madeira que fazia conjunto com um oposto, sustentando vigas triangulares, e tirou da bainha seu machado com uma lâmina longe de ser cega. Andou, tocando-a com a ponta dos dedos, quase com delicadeza por medo de se cortar.
    — Voltei para nos casarmos, Björn — ela anunciou aflita com os passos pesados que ele dava. — Dessa vez eu juro realizar a cerimônia sem pestanejar! — argumentou, não tendo nada mais a dizer.
    Björn limpou a garganta, estalando o pescoço com movimentos imprevisíveis.
    — Meu povo adora celebrar datas especiais em família. Essa que vejo aqui reunida na minha frente me parece um pouco distante. — Björn rodava o machado nas mãos, andando sem piscar, medindo os mínimos movimentos da sua prometida insubordinada. — Infelizmente será a última vez que os três estarão juntos. Talvez eu tenha feito bem em fazer acontecer essa pequena reunião antes, não acham?
    De uma vez o homem virou e manteve as pontas das lâminas curvas pressionando o pescoço da mãe de Jullit que se esgueirava para fora do trono. A mais velha balançava a cabeça em negação, segurando o choro.
    — Vou te matar, filho dos Leif!
    O pai dela se levantou e tentou atacar o guerreiro pelas costas, um erro que o levou ao piso por uma cotovelada que quebrara seu nariz. Depois o brutamontes o ergueu pelas roupas e arremessara de volta no trono.
    — Pare! Não machuque meu marido! — gritara a jarl mais velha, que logo mais fora empurrada contra a pedra pelo machado de novo e dois cortes surgiram no seu pescoço. Jullit começara a tremer quando vira que seus pais estavam feridos gravemente.
    — Fiquem aí e não se atrevam a mexer um músculo ou corto fora teus braços e pernas! — Mudou o curso do machado para Jullit, que teve um espasmo no supercílio. — Se tivessem ensinado bons modos a tua cria ela não teria me irritado e os dois seriam meus sogros queridos. Protegeria a aldeia de invasores e — ele se interrompeu, escurecendo a expressão e passando a avaliar a jovem. — Bom, estou farto de mentiras, então hei de ser sincero daqui para frente.
    — O que tu queres, maldito?! — esbravejara a jovem com lágrimas de ódio fervendo nos cantos de seus olhos cor de avelã.
    — Olha só como as pessoas tornam-se solícitas quando estamos com as mãos ao redor dos pescoços de seus entes queridos — foi sarcástico, escarniando de forma endiabrada.
    — O que queres de nós?! — repetira entredentes, o choro corria livre nas suas bochechas sem seu controle.
    — Para ser honesto, desde o início tive vontade de rasgar aquele teu vestidinho e colocar cento e vinte quilos de um macho cru em tua bunda. — Os olhos dele pareceram adentrar ainda mais na escuridão antes de se estreitar. —  Não tenho certeza se poderia sobreviver a isso. Tenho anos de uma incômoda frustração sexual e toda ela seria colocada em você. — Ela deu um passo para trás, horrorizada. — Obviamente eu também gostaria de ser dono dessas terras e as transformar em meus domínios. Para isso acontecer de forma fácil e rápida teria de casar com a filha do atual dono, que acontece de ser a senhorita.
    Colocando o machado rente ao corpo de dois metros, a esposa pôde rastejar até seu esposo e o trouxera para suas coxas, o sangramento nasal acabando com o vestido da jarl. Björn e seu odor avançaram até que aquela boca nojenta entrou em contato com a têmpora de Jullit. Ele respirou e então dissera:
    — Mas percebi que para obter minhas conquistas não seria necessário um matrimônio. Com uma aldeia decadente como essa eu não preciso me sacrificar a uma vida patética provinda de um acordo. Decidi tomar teus recursos à força e sair com tudo! Os famintos ficarão sem suas carnes e minha aldeia recuperará os hacksilvers gastos numa insolente que não segue as tradições e nem sabe teu lugar. Diga adeus a tua vida de outrora.
    Gritos e estrondos vieram da aldeia. Os Leif chegaram e derrubaram os pequenos portões. Quando o barbudo fez sua risada gutural, comemorando antecipadamente, Jullit deu uma joelhada bem naquele lugar e Björn teve de se apoiar em um só joelho, proferindo ofensas em alto e bom som. A jovem aproveitou a deixa e correu para fora da cabana. A visão que teve estava mil vezes pior que a lá de dentro.
    Stures e Leifs travavam uma guerra que só poderia ter um lado como vencedor e infelizmente o povo de Jullit estava perdendo. As casas pegavam fogo, corpos estavam esparramados no chão. Um dos bárbaros tinha um sorriso perverso enquanto retirava o machado do crânio de um pobre coitado que costumava desejar diariamente um bom dia à jovem. Esse mesmo se virou e naquele meio de terra rapada, cinzas caindo e urros bestiais, uma criança entre sete e oito anos estava coberta de fuligem, caminhando de olhos cerrados chamando em soluços sua mãe que certamente se fora. O homem ergueu os ombros e, prestes a baixar e ceifar a vidinha inocente, Jullit a pegara no colo e fugira, escondendo-a num beco e, no que se virara para realizar outro ato heróico, foi pega pelo tal guerreiro pelos cabelos, sendo rudemente arrastada e tendo de suportar o peso do sujeito repugnante em cima de si. Ela se debatia e recebera um soco atordoador por isso, enxergando dobrado uma lâmina afiada erguida no topo da cabeça dele que tinha inúmeros requintes de crueldade em seu olhar. Ela fechara os olhos, fazendo uma cruz com os pulsos, todavia um grito horrendo irrompeu em meio ao burburinho de metais se encontrando.
    O homem largara o machado, abanando desesperado por conta do corvo que bicava e arrancava fora seu olho. O globo ocular pendia perto do nariz, deixando um oco, e o corvo o espetava com suas garrinhas, batendo suas asas negras causando arranhões em sua face. Jullit empurrou o corpo esfolado, tomando o machado e atingindo o homem que no mesmo segundo parou de emitir som. Um filete manchara o busto da jovem e suas mãos soltaram a arma. O que ela fora levada a fazer? Seria esse banho de sangue obra de Tyr?
    Sem tempo algum a se refletir sobre o mal apessoado que entregara às valquírias que o levariam a Valhalla para julgamento, Jullit fora erguida pelo pescoço, os pés balançando suspensos. O semblante de Björn estava furioso.
    — Sua pestinha! Tomarei a aldeia desses fracotes e tu terás o que tanto queria, Jullit! Não terás de ser minha esposa, contudo não vejo porque não te tornar minha escrava sexual. Ficará tão feliz quando estiver preenchida pelo meu falo que chorará e se esquecerá do sangue derramado de todos que conhecia! — As unhas dele a machucavam e seu corpo enfraquecia, mas ela lutava para se manter lúcida. Por sorte o homem afrouxara a pegada logo antes dela desmaiar. — Homens, o que está acontecendo?! — Jullit deixara a cabeça pender de lado, ficando incrédula com a cena sanguinária.
    Os gritos não mais eram de empenho e sim de terror. Os guerreiros Leif caíam um a um com cortes certeiros e profundos em suas gargantas que surgiam em frações de segundos. Ora uma sombra cinzenta virava suas cabeças do avesso, ora um pequeno e carnívoro corvo sobrevoava e aterrissava em uma forma maior e feminina, rasgando com os dentes e cuspindo suas aortas. Quando os olhos azuis encontraram os da jovem, os corações sincronizaram em ritmo acelerado.
    — Então a lenda da vættir é real. Acho que capturando um peixe grande desses serei invencível! — ponderou o grandalhão em voz alta.
    — Não! Não machuque a Katie! Eu lhe imploro! — Jullit soluçara entalada, os dedos voltando a apertar fortemente serem uma grossa gargantilha.
    — Ora, ora! Tu a domaras, pequena fedelha? Isso me surpreende, contudo temo que, sabendo disso, teu corpo não seja mais puro. Seres sombrios como aquele despejam doenças na corrente sanguínea de qualquer um se tiverem a chance. — Ele a vira de lado, encontrando duas marcas no pescoço e suspira, derrubando Jullit e erguendo o machado. — Como eu pensei... Morra, sangue ruim!
    — Júlia! — McGrath transmutou-se para o corvo, porém a lâmina já havia atingido um tórax muito jovem.
     — Syfra! Ó, não! Não, não, não! — os lamentos de Morgana, que era segurada pelo senhor e senhora Sture na escadaria da cabana, despertaram uma fúria silenciosa em Jullit, que assistira sua thrall sufocar no próprio sangue enquanto Björn desprendia o corpo moreno em um chute como se não fosse nada.
    — Monstro! — Sture proferira num rosnado, amortecendo a moreninha em seus braços, tremendo ao retirar as madeixas de seu rosto avermelhado.
    — M-minha senhorita b-bondosa... Traga a p-paz para as aldeias e a-ame de volta quem lhe amar verdadeiramente. — Esse fora o último pedido que a devota thrall fez. O brilho de suas órbitas de âmbar se perdera e sua respiração se fora para sempre junto com metade da alegria das memórias que Jullit tinha com ela.
    — Que importuno indesejado! Detesto escravos! — reclamara Björn, escarrando num montinho de neve ali perto. — Onde estávamos, Sture? Ah, sim, tu morrerás pelas minhas mãos!
    Preparara-se novamente para a fatiar, porém fora Syfra que dera os segundos necessários para que McGrath o alcançasse, quebrando de lado com a sola do sapato sua tíbia em dois pedaços e o desarmando. O barbudo urrara de dor, esmurrando a parte de trás do joelho da vættir e a dera uma chave de braço, mas Katie contornara a situação, mordendo com toda a força que podia exercer com sua mandíbula o úmero de Björn, dilacerando a pele como se um lobo abatesse uma corça e, tornando um dos braços dele troncho, ela levantou, girou, olhou diretamente nos olhos machistas dele, esticou e fechou as mãos em tesoura, mostrando suas presas e as chamas azuis num frenesi furioso. Tudo o que se ouvira e vira fora um barulho de gelar a espinha e em sequência a cabeça caída distante do tronco de Björn.
    Um dos Leif ainda vivo vira a cena e, muito inteligente, anunciara uma retirada. Assim, o exército do morto correra acovardamente para a floresta e, após perderem os invasores de vista, jogando machadinhas nas suas costas apenas para garantir que não dessem meia volta, os karl saíram dos esconderijos e buscaram suas famílias, batendo as espadas em seus escudos em sinal de vitória.
    McGrath caminhara manca para os braços de Sture, que abraçara sua amada pela nuca. As duas fizeram carinho em seus fios, aliviadas por terem sobrevivido. Jullit beijou fervorosamente sua amada e Katie, por sua vez, triscou de leve no machucado acima da sobrancelha de Sture, exercendo com um selinho sua gratidão por esse ser o melhor dos resultados do evento trágico.
    Similarmente emocionada, Morgana chorava aos pés de sua amiga, chamando atenção da Sture e da vættir. Reuniram-se, então, ao redor da pobre valente que se sacrificara por uma jarl que ela acreditava ser diferente. Jullit fechara os olhos de Syfra e dera seu ombro à desolada Morgana.

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