Capítulo 3

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Depois de um banho restaurador, ou apressado, depende do ponto de vista, Selene dispensou suas criadas que a vestiriam e abriu o armário, mexeu em algumas roupas dobradas em uma gaveta e achou o que precisava, uma camiseta cinza com mangas mais largas, um colete de couro e calças igualmente de couro preto.
A garota estava colocando sua bota de cano curto quando a irmã escancarou a porta com seu segundo irmão atrás.
-Falei que ela já estaria de roupa. – A loira diz e seu irmão entra no quarto.
-Que saudade! – Roland fala abraçando a irmã.
-Todos gostam de abraço então. – A morena comenta rindo.
Roland a segura nos ombros e a encara – Como ousa não aparecer em meu casamento, irmã? Sabe como eu precisei de você para ser meu padrinho e tive que pedir para Kinsey ocupar seu lugar? Foi agoniante vê-lo fazendo o discurso, soava como se fosse um rei. – O irmão faz seu drama e ela revira os olhos, achando graça da brincadeira.
-Sabe como foi difícil ficar na linha de frente por dois anos? Eu realmente precisava de sua ajuda, irmão! – A menina rebate e ele à solta.
-Estamos quites. – Ele pisca e aponta para a porta – Vamos então? Ou irá esconder alguma arma nessa roupa?
-Na verdade, não pensava em esconder... – Selene coloca seu cinto que possui bainha para sua espada de lâmina curta, a que tinha ameaçado o coronel Grant no acampamento, e os irmãos a olham boquiabertos – Precaução. – Ela explica e se dirige a porta, muito tempo sendo espiã e precisando desconfiar de todos, a partir disso ela tenta estar sempre preparada.
-Então vamos. – A loira diz com a voz tremida e puxa Roland para fora.
-Espero que o rei não se sinta ameaçado. – Roland comenta.
-Se a situação ficar dentro dos limites, ele não precisará se sentir ameaçado. – Selene fala e segue para o escritório, sua irmã ri da piada, mas ela sabe que talvez não seja uma.

-Agora que todos estão presentes, podemos finalmente ter uma reunião da família real. – Kinsey começa.
-Desde quando aqueles dois estão incluídos nessa reunião de família? – Selene cochicha a irmã.
-O casamento une as pessoas, às vezes mais do que gostaríamos. – Roland é quem a responde.
Todos que estavam na reunião há quatro dias, estão presentes de novo, mas dessa vez a rainha Dara está sentada no divã vinho, junto com Aurora e Roland, Selene fica em pé atrás do divã com a mão em sua espada e analisando toda a sala. A rainha Ágata e seu irmão, Atílio, estão ao lado esquerdo do rei que está sentado atrás da mesa e apoiado sobre ela.
-Como você bem deve saber irmã, a guerra está longe de acabar. – Ele fala diretamente a Selene – Perdemos muitas vidas nos últimos anos, você que esteve na linha de frente viu e não conseguimos avançar muito, sem contar que um de nossos objetivos de roubar terras, não progrediu como esperávamos, por mais que tenhamos conseguido algumas... perdemos também.
-Claro, mas as tropas que estavam a leste do mar Baleara estão fazendo movimentos de avanço pela terra limite de Gouren, logo os soldados estarão na linha de frente de novo enquanto conquistam terras pelo seu caminho... – A garota responde olhando nos olhos do irmão.
-E você garante que não terá emboscadas? Que ninguém irá se ferir? – O rei pergunta sustentando o olhar, mas vê que a menina se cala – Seria inocência sua irmã, fingir que na guerra não há imprevistos ou mais que isso, não há como termos a certeza da vitória.
Selene olha para baixo, muda, sabe que irmão está certo. Nestes anos no exército, alternando entre a linha de frente e algum esconderijo pela natureza para sua sobrevivência, sabe que afirmar que não haverá mortes em uma guerra... é uma mentira que ninguém crescido acredita.
-Então o que você sugere? Que recuemos? – Pergunta ainda olhando para baixo, pensando no general e em seus irmãos de consideração.
O rei abre um sorriso e começa a caminhar pela sala, até agora, nenhuma outra pessoa ousou questionar ou até mesmo reclamar sobre este assunto, os únicos que entendiam de guerra estavam falando. Tanto seu irmão pelo peso de mandar pessoas a batalha, dar ordens de avançar, recuar e escrever cartas as famílias dos falecidos, quanto a garota por ver e sentir na pele a adrenalina de estar sempre esperta a qualquer movimento que pode virar um caos.
-Eu tenho uma solução para acabar com o derramamento de sangue e recuperar nossas terras. – Ele fala, chamando a atenção da morena de volta – Há uma década estamos lutando com um reino, perdendo vidas de nosso povo, dos nossos nobres da família Roux e alguns contribuintes da família Solveig... se a questão é a guerra, iremos acabar com ela.
Selene ri debochando do que o irmão diz e se aproxima com passos pesados até ele – Está dizendo para nos rendermos? Você acha que o povo irá aceitar onze anos de guerra, para ao final falarmos que acabou nos vendendo? Que acordo é esse com o rei de Gouren? – Ela se segura para não gritar, mas mostra em todo seu corpo como está agitada pela irritação.
-Em momento algum falei de rendição, mas sim, há um acordo. – Responde endireitando as costas.
-QUER FAZER UM ACORDO COM O REI QUE MATOU NOSSO PAI? – A garota explode, Roland e Aurora aparecem ao lado da garota, a segundo pelos braços caso ela tenha uma ideia estúpida, como atacar o rei.
-E você quer continuar pintando as mãos com sangue? Liderar soldados para o abate? Massacrar vidas inocentes que não tem nada a ver com a nossa história? Se recomponha Selene, todos nós perdemos alguém importante. – O rei diz friamente e volta para atrás de sua mesa, se sentando em sua cadeira.
-Todos perdemos o papai, mas não finja que foi o que mais sofreu, irmão. – Roland fala e leva as irmãs para se sentar no divã.
-Meu rei fala a verdade e é forçado a ouvir gritos de uma selvagem? Quer dizer... uma irmã mais nova. – A rainha Ágata fala sarcástica a observando com um certo desprezo, seu irmão esboça um sorriso em concordância com o que a irmã fala e a rainha Dara revira os olhos.
-Continue rei, ela ainda não sabe o papel que irá desempenhar. – A rainha Dara diz entediada e nota a filha a encarando.
-Algumas semanas atrás, o rei Kabir Allard esteve aqui, já fizemos o acordo. – Kinsey comenta atraindo surpresa nos olhos dos três irmãos, que pareciam ser os únicos que não sabiam.
-Casamento... – Aurora murmura com os olhos arregalados e a irmã vira a cabeça para a olhar.
-Nós decidimos que para manter nossa promessa de paz entre os dois reinos novamente, iríamos apelar a tradição que mais foi honrada nos últimos séculos, o casamento. – O rei continua.
-Príncipe Hakon. – Aurora fecha os olhos e solta a mão que estava até agora no braço da irmã, sabendo que a irmã a escuta, sussurra – Sinto muito, irmã.
-O segundo filho do rei de Gouren é quem assumirá o trono, e precisa ser em breve, para isso ele precisava de uma esposa e eu sugeri uma de minhas irmãs. – Selene fica boquiaberta e passa os dedos na raiz do cabelo o segurando com força – É claro que falei de Aurora, minha caçula que cresceu no palácio e conhece todas as boas maneiras de uma dama, assim como sua beleza inocente e pura como água cristalina...
-Você nos apresentou como mercadoria, irmão? – Dessa vez foi Aurora que vociferou para o garoto com a coroa.
-Mas não pude deixar de lado esse seu temperamento de desrespeito, poderia ser a preferida se não ousasse responder tanto seus superiores... você cresceu no palácio, não haja como uma selvagem. – Kinsey diz como um conselho.
A palavra selvagem ecoa pela sala pela segunda vez em uma única conversa, fazendo as irmãs respirarem fundo, “aquela prima fútil já está fazendo a sua cabeça, Kinsey”, a morena pensa.
-Ela não foi a preferida? Então você ofereceu mais quem? O Roland? – A morena diz sarcástica se levantando novamente.
-Na verdade, o futuro rei concordou em fazer um torneio aqui em nosso reino para as garotas nobres e plebeias que gostariam de tentar a sorte, desde que seja uma nascida em Aragon, está feito o acordo. – O irmão declarou, mas todos continuavam o encarando, sabiam que ele continuaria – Porém quando falei que possuía uma irmã que era soldada e estava lutando na batalha lado a lado de outros de seu povo, o rei se encantou, mas o mais importante foi o príncipe a escolhendo como a preferida. – O rei exibiu um sorriso malicioso e cruzou os dedos em cima da mesa.
-Sou a preferida por matar milhares de seus soldados? – Selene responde irritada e continua – Quem disse que irei participar deste torneio? É para garotas que gostariam de aumentar o status, eu estou satisfeita com o meu.
-Vocês duas participarão, é uma ordem. – A rainha Dara interfere.
-Minhas ordens até hoje cedo, eram matar o rei de Gouren, quem disse que não irei matá-lo a qualquer oportunidade? – A garota desafia e o irmão semicerra os olhos.
-Pois não iremos a aceitar neste reino caso isso aconteça, pode fugir sozinha pelas nossas terras, mas nós a encontraremos irmã. – Diz e faz um sinal com a mão – Estão dispensados e você, vá colocar uma roupa de princesa.
Selene corre por alguns corredores e pula os degraus de escadas até chegar ao jardim de pedras que há na parte mais inferior da construção do castelo, ela caminha pelo limite do jardim, olhando para baixo e vendo a espessa neblina que não a permite ver quantos metros tem a cachoeira até o rio.
-Alguns acreditam que tenha mais de duzentos metros. – A rainha Dara diz por trás da filha.
Selene se vira assustada e sai de perto da beirada do jardim – O que está fazendo aqui?
-O palácio ainda é meu, lembra? – A responde e suaviza o rosto que estava enrugado antes – Acho que nós duas concordamos em algo depois de tanto tempo.
A morena se escora em uma parede do castelo e observa a mulher, a rainha envelheceu, agora possuía rugas ao lado de seus lábios e na testa, mas não se encontrava sinais de algum pé de galinha ou bigode chinês... ela parece não ter sorrido pela última década.
-Não tenho tempo para ser analisada. – Diz e franze a testa mostrando mais as rugas, quando percebe que a garota está olhando, passa os dedos tentando diminuir a tensão – Vamos ser cumplices ou não?
-Depende. – A garota escolhe suas palavras.
-Eu acho que Aurora está mais preparada para se casar do que alguém que passou onze anos brincando de ser soldado.
-Brincando? O que você diria sobre a vida das vítimas que permitiu que me acompanhassem até essa brincadeira? Ou melhor, o que a família deles diria? – Afronta Selene.
-Mas ela não está preparada para a ordem que irei lhe dar, pelo menos você já matou pessoas... – A rainha fala com olhos cravados na garota, se aproximando lentamente – Mate o rei de Gouren.
Selene semicerra os olhos com a aproximação da mãe, não gosta nada de elas estarem sozinhas em um lugar belo, porém perigoso, igual a pessoa a sua frente.
-Não obedeço a ordens da rainha mãe.
-Pois acho bom você levar em consideração, que a palavra de uma rainha, é sempre a verdade absoluta. – A mulher pega a espada da garota e faz um corte pequeno na parte interna da mão, largando o aço no chão assim que o sangue começa a pingar – Em quem você acha que acreditariam?
-O que você está... – Selene observou a cena sem entender.
-Quer ver o que é manipulação? Vou te ensinar agora. – A rainha abriu a mão, mostrando o corte com sangue a filha - Você não gostou de ouvir que seria obrigada a participar do torneio pela atenção do futuro rei, então eu como sua mãe, fui atrás da minha filha para oferecer um ouvido para suas reclamações, mas eu não deveria ter chegado tão perto de alguém que foi criada no exército, você ficou irritada e impulsivamente feriu sua mãe, ainda bem que eu consegui segurar o aço com minha mão, pois você mirou na boca do estômago. – A Rainha Dara fala rindo – Você ainda não percebeu? Eu posso acabar com a sua vida apenas com palavras.
A garota fica em choque por uns minutos, depois fecha a cara e se agacha para limpar sua espada na grama, quando se levanta está rindo, e a mulher a sua frente franze de novo a testa, mas agora é por não entender a mudança de humor da filha.
-Alguém crescido no exército sabe controlar sua raiva. – É o que responde a morena enquanto guarda o gládio romano na bainha em seu cinto.
-Você não entendeu... – A rainha tenta falar, mas a filha se aproxima de repente.
-Uma pessoa criada para matar sabe quando e onde atacar e se eu quisesse realmente te ferir, você não seria rápida o suficiente.
A rainha levanta a mão para dar um tapa no rosto da filha, mas a garota segura seu braço e o torce, prendendo-o nas costas da mãe.
-Eu provavelmente iria nesta artéria do seu pescoço. – Selene fala ao pescoço da mãe e então abaixa o tom de voz, para ficar como um sussurro – Você pode acabar com a minha vida com palavras? Eu termino a sua com minhas mãos. – A garota à solta com um empurrão para frente e se dirige ao palácio novamente.
Ela não é mais uma garotinha indefesa, claro que tem um certo medo da rainha, mas agora já sabe seus limites e defeitos, e não vai hesitar em usá-los.
“Enfrentei pessoas muito piores que essa mulher na guerra, agora ela só se tornou um desafio diferente para mim”, pensa pegando a espada e percebendo que teria que a limpar e a bainha também, pois esse sangue ruim havia ficado impregnado.

𝐈𝐬 𝐢𝐭 𝐟𝐚𝐢𝐫, 𝐨𝐫 𝐢𝐬 𝐢𝐭 𝐟𝐚𝐭𝐞? | ᴘᴇʀsᴏɴᴀɢᴇᴍ ᴏʀɪɢɪɴᴀʟ Onde histórias criam vida. Descubra agora