Capítulo 2

447 32 12
                                    

Mais um capítulo no ar. E desta vez ele é narrado pelo bravo capitão Douglas Cadore. O que será que está se passando no coração de nosso lindo capitão? Só lendo, curtindo e comentando.

“Tomará alguém fogo no seio, sem que suas vestes se incendeiem? Ou andarás alguém sobre brasas, sem que se queimem os seus pés?” (Pv 6.27-28)

Por Douglas Cadore

O caminho até o batalhão pareceu mais curto naquela noite. Talvez pelo fato de eu ter acelerado um pouco acima do costumeiro. Gosto de correr, mas não de me arriscar desnecessariamente como o fiz. Um raquítico vira lata, que resolveu cruzar o meu caminho, escapou por um triz. E eu também. Senti meu sangue gelar quando o animal estancou no meio da pista e me fitou esperando pelo pior. O que não me impediu de nos livrar de uma desgraça. Morreríamos os dois, na certa. Preferi transferir a culpa para os meus nervos alterados. E minha esposa sabia deixá-los aflorados como ninguém.

Senti certo alívio quando não encontrei ninguém no  pátio do batalhão. Não estava para conversa. Fui direto para minha sala que ficava no piso superior.

Afundei no sofá e nem me preocupei em acender a luz. Por entre as persianas uma tênue luminosidade,  que vinha de um dos postes de iluminação pública da rua, quebrava o breu do recinto. Fiquei ali mergulhado no silêncio e na escuridão na vã esperança de que alguma luz se acendesse, por pequena que fosse, e me indicasse um caminho para resgatar o meu casamento. Ou que alguma voz me sussurrasse por que ainda valia a pena estar casado com Samantha. Nada aconteceu. Passei as mãos por entre os fios curtíssimos e contemplei tudo ao redor. Mesmo a pouca luz eu sabia exatamente como estavam dispostos os poucos móveis daquela sala. O gabinete de madeira, o sofá de dois lugares, o armário de ferro. Tudo muito simples e usual.

Comecei a acreditar que o único lugar em que tinha relativa paz era quando me encontrava dentro das paredes daquele batalhão ou em atividade. Amava meu trabalho. Pelo menos em relação a isso, ainda tinha alguma certeza.

E agora mais ainda quando ele se mostrava ser o único refúgio realmente acolhedor. Desde muito jovem nunca duvidei sobre qual carreira queria seguir. Fazer parte da equipe do corpo de Bombeiros de minha cidade era sonho antigo. Quando me casei Samantha, tive a certeza que caminhava certeiro para a realização de todos os meus mais preciosos sonhos.

Ser pai seria o próximo item a ser riscado de minha lista de desejos. Fiz plano de ter vários filhos. E desde a primeira vez que a vi, meu coração foi irremediavelmente cativado. Como ela era linda. Nem acreditei que teria a sorte grande de me casar com uma moça tão encantadora. Aquela jovem de vívidos olhos verdes pareceu ser a mulher perfeita para ser a mãe de meus filhos e minha companheira para os momentos felizes e infelizes. Só que eu custava a entender por que nós teimávamos em protagonizar apenas a parte ruim da história.

Aonde havia ido parar a leveza das palavras, a alegria de estar um ao lado do outro, a cumplicidade no olhar, a compreensão diante das falhas, o afago despretensioso, os dedos entrelaçado e o sorriso fácil? Eu não sabia responder. Há muito tempo, não conseguia mais encontrar respostas para os dilemas dentro do meu casamento. A verdade é que meu jardim seguia rumo à desertificação. Toda a relva já havia secado, as águas se tornaram rotas, as árvores não davam mais frutos, as flores murchavam antes do tempo e as poucas que escapavam, não exalavam mais seu cheiro característico. Só conseguia contemplar a sequidão e não tinha como evitar que o ressentimento se espalhasse pelo meu peito como uma erva daninha. Eu refletia sobre toda a nossa trajetória até ali, quando a porta abriu de repente.

- Meu Deus! Que susto, capitão.

Continuei fitando a tenente Ivansk com semblante inalterado. Só procurei me aprumar melhor no sofá. Ela continuou:

- Perdoe-me por ter entrado sem bater. É que como estava tudo escuro pensei que não houvesse ninguém aqui. – a voz dela saiu meio engasgada devido ao nítido nervosismo da moça.

- Eu é que devo pedir desculpas. Não tive intenção de assustar ninguém. Do que se trata?

- Trouxe esses documentos para o senhor ler e depois assinar.

- Deixe-me ver isso. – estendi a mão esquerda.

Sabrina se aproximou lentamente e me entregou o envelope. A austeridade da farda não conseguia ocultar a beleza da jovem, mas não me atentei para este fato. Não naquele instante. Logo fui absorvido pela leitura do documento. Precisava mesmo desviar os pensamentos para outros caminhos. Alguns segundos se passaram e o silêncio foi absoluto no pequeno espaço. Sem tirar os olhos das folhas que analisava, inquiri:

- Está desconfortável com alguma coisa, tenente?

- Não. Por que a pergunta, senhor? – ela se aprumou melhor tentando mostrar mais autoconfiança, entretanto isso não me convenceu.

- É que desde que chegou parece inquieta com algo.

- Desculpe, senhor. É que não pude deixar de reparar que a sua tentativa de se livrar da lama da última ocorrência não foi bem sucedida.

Eu finalmente a fitei. Meus olhos se estreitaram, avaliativos. Conseguia ficar mais intimidador quando encarava alguém daquela forma. Mas por algum motivo não surtiu muito efeito nela. Sabrina se continha para manter-se séria. Percebi certo divertimento no semblante da jovem e fiquei mais constrangido com a situação. Agora meu vexame doméstico estava prestes a se tornar público. Ela percebeu o desconforto gerado pela observação e procurou amenizar a situação apontando discretamente para o próprio coturno. Alguns blocos de terra ainda podiam ser visto presos na lateral do calçado dela.

- Está vendo. Não foi só o senhor que teve dificuldade em se livrar de toda aquela sujeira. – condescendeu gentil.

- Confesso que não foi muito fácil. Principalmente, pelo fato de eu ter que fazer isso em cima da hora.

Sabrina não perguntou nada a respeito, mas consegui interpretar a pergunta que estava formulada na cabeça da jovem: E a sua esposa? Por que ela não o fez por você? A resposta não era das mais agradáveis. Samantha há muito tempo só se importava com o que acontecia ao redor da própria órbita. A partir daí, a jornada foi se tornando pesada e solitária, para ambos. Havíamos caído em algum tipo de buraco negro. Atualmente, acreditava que nós dois vivíamos em galáxias totalmente distintas. Procurei pela linda mulher por quem havia me apaixonado, no entanto, ela havia partido. Meu coração pesou, mais uma vez.

A primeira tenente percebeu novamente o meu desconforto e mudou de assunto rápido. A moça procurou seguir por temas triviais e sorriu quando notou que havia atingido o efeito desejado. Aos poucos fui baixando a minha guarda e nem me apercebi disso. E a cada minuto que se passava, a conversa leve e inteligente da bela mulher a minha frente foi me cativando.

O relógio seguiu marcando o tempo e nós nem nos demos conta. Se eu achava que estava perdido dentro do meu casamento, isso é por que eu não havia ainda compreendido a dimensão que isso poderia significar. E cair na teia de uma mulher faceira, poderia ser a maior de todas as minhas perdições.

Desafiados a AmarOnde histórias criam vida. Descubra agora