UM

502 75 91
                                    



     Os cascos do cavalo batiam com força no chão enlameado desde o momento em que eu abruptamente montei em sua cela. O que fora antes um delicado vestido branco de noiva, agora era apenas uma mistura de salpicado de feno e terra, o longo véu que pendia da minha cabeça arrastava pelas costas do cavalo e descia pela trilha apagando as marcas das pegadas que eu deixara pelo caminho. Soltei o tecido de renda fina e nobre do emaranhado de grampos que prendiam meus cabelos, puxei sem cerimônias e o soltei ao ar para que o vento levasse para longe uma das peças que marcava meu destino. Senti quando meu denso cabelo se soltou do agarre dos grampos e caiu livremente até a altura do meu quadril.

      Enquanto eu guiava minha montaria para qualquer lugar longe do meu futuro, deixei o vento e o sol acariciarem minha pele, sentindo o misto de alegria e ansiedade dominar meu peito. Mesmo agora, correndo a toda velocidade para dentro da floresta a possibilidade de ser encontrada e arrastada novamente para o templo era real.

      Me preparei durante anos para esse dia, anotando cada acontecimento importante e repassando ele diariamente para que ficasse gravado em minha mente tal qual o meu próprio nome. Cada evento, cada passagem de ano e preparativos eu tenho decorado e não me envergonho de ter usado essas informações para o dia de hoje.

      Meu casamento com o duque e general Valodimir de Dusan foi planejado para ser uma cerimônia ancestral, seguindo todas as tradições que a poderosa família Dusan acumulou durante seus anos de descendências. O ducado de Dusan é o mais poderoso de toda nobreza de Alencar, ficando atrás apenas do rei e da rainha. Eles, assim como todos os nobres da corte são extremamente religiosos e usam o nome da Santa Serafina — a mãe de todos os homens — em qualquer cerimônia formal, e o meu casamento não foi diferente. E, como eu já sabia o que iria acontecer, aproveitei para montar meu plano de fuga me aproveitando da tradição mais arcaica da família.

      Eu e o meu quase marido, teríamos que nos prostrar diante da imagem da Santa durante três horas — uma hora para cada ex-esposa do duque — em respeito aos seus antigos casamentos, para que as experiências anteriores fossem apagadas pela misericórdia da Santa. Lembro-me de sentir esperança, de me ajoelhar e de orar fervorosamente enquanto imaginava se o duque fazia o mesmo, já que ficamos em salas separadas. Tolice de uma versão minha que nunca existirá. Mas eu ganhei a oportunidade de presenciar eventos futuros, e com isso, montei minha estratégia durante quatro anos.

      Algumas horas antes eu era banhada com rosas e leite por criadas que não me olharam no rosto durante todos esses anos em que vivi no palacete do meu pai. Fui adornada, paparicada e embrulhada de presente para um destino cruel. Recordo, enquanto era vestida com um lindo vestido de noiva com camadas e camadas de tecido macio e da mais fina alfaiataria, de uma vez quando tinha por volta de treze anos e brincava no quintal da frente do palacete e cometi o erro de cruzar o caminho de meu pai. Pela primeira vez em anos ele me olhou de verdade, e por um mísero instante imaginei que ele me havia percebido como sua filha, mas o que ele disse em seguida quebrou qualquer esperança de uma relação futura.

      — Se parece com sua mãe disse, levantando meu queixo com sua mão. — Pelo menos com a aparência exótica como a dela pode ser vendida por um preço alto.

      E anos depois ele encontrou alguém que me comprasse, mas nem meu pai e ele ficarão satisfeitos com a transação.

      Deixei que os servos me guiassem pelo templo já conhecido. Deixei que me levassem como uma boneca de pano por todos os corredores sinuosos e excessivamente brancos até a sala de oração, fiz tudo o que era devido até as portas se fecharem. Não reverenciei a imagem imponente da Santa, ela não me ajudou nenhuma vez em minhas memórias então não merece minha devoção, mas tomei cuidado para não fazer barulho enquanto atravessava o cômodo em direção a outra porta. Descobri, numa das vezes em que fui obrigada a acompanhar meu pai nesse templo, que todas as salas tinham duas passagens, a do público e a dos sacerdotes. Em dias de cerimônia como os de hoje, as portas dos residentes do templo ficam inutilizáveis, pois todos estavam em polvorosa para atender aos nobres, os principais financiadores da Santa.

Eu Não Vou Sobreviver (Livro 2)Onde histórias criam vida. Descubra agora