QUATRO

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     Caym não me deixou dormir o restante da noite, resolveu mostrar seus dotes musicais — inexistentes — com um alaúde, e sua bela voz recheada com o sotaque alcoólico de quem não vale um xelim. Escorei-me na madeira de um baú e enrolada na coberta fiquei o assistindo beber e torturar aquele pobre instrumento. 

     Não reclamei ou retruquei, confesso que apesar do intuito dele ser me atormentar, a imagem de seu rosto pintado me era um acalento. Era engraçado ver os riscos de tinta se movendo enquanto ele arranhava a trova que contava sobre um guerreiro que escalou até o alto da torre atrás de sua dama, mas a encontrou vazia.   

     Cocei minha têmpora esquerda segurando a risada. Aquela deveria ser uma canção de ninar infantil, mas em sua voz parecia mais com perversas rimas, ele dava uma estranha ênfase sexual para tudo. 

     Era curioso também assistir o homem que viria a ser um terrível tirano bebendo e tocando enquanto cantava desafinadamente, me olhando provocativo de vez ou outra, achando que estava me atingindo, mal sabendo que ao fazer aquilo, seu rosto desenhado assumia uma figura incrivelmente engraçada de um bobo da corte. 

     Em dado momento não sei se cochilei sentada, ou se ele cochilou com a testa colada à mesa, mas acabei acordando com a claridade do novo dia vinda pela porta da tenda aberta. Caym estava parado de pé me olhando. Se espreguiçou como se tivesse tido uma excelente noite.

     — Teve uma boa noite de sono, cenourinha? 

     — Ótima! — desdenhei, me espreguiçando também. — Melhor impossível. 

     Ele sorriu, mostrando a fileira de dentes brancos. 

     — Tudo para minha convidada. 

     — Sei que sim — abanei a cabeça cerrando os olhos. — Você é um verdadeiro cavalheiro. 

      Caym piscou satisfeito, ele gostava disso, do deboche, do sarcasmo e da ironia. Aquele homem era insuportável. 

     Deu-me as costas, indo em direção a porta aberta, minha barriga respondeu com um calafrio, levantei depressa e corri até a extremidade, o vendo andar pelo acampamento cumprimentando alguns soldados e aldeãos que alimentavam as fogueiras para o desjejum, alguns recolhiam o acampamento para seguirem o itinerário juntos da caravana. 

     Não demorou para ele perceber que estava sendo motivo de risadas, até que um deles apontou para o próprio rosto. Caym dirigiu-se até um barril com água e olhou-se nele. O reflexo instável da água agora deveria mostrar-lhe o bigode, as sobrancelhas juntas, os coraçõezinhos nas duas bochechas e a grande cenoura no meio da testa. 

     Percebi que ele apertou a madeira do barril com força antes de afundar o rosto naquela água gelada, e esfregá-lo brutalmente. Cruzei os braços frente ao peito e esperei. 

     Quando Caym voltou na minha direção, a tinta ainda manchava seu rosto, não tão forte como antes, mas a base ainda estava ali, dava para notar o contorno dos desenhos. Ri abertamente enquanto ele dava longas passadas até mim. 

         — Ora, ora. Que belo exemplar masculino tenho aqui — uma veia saltou da mandíbula de Caym, ele retirou a fina blusa de linho branca manchada de tinta que estava colada junto ao peito, e ainda me encarava enquanto usava-a para esfregar no rosto.

     — Digo o mesmo, minha fã. 

     Ele adentrou a tenda com o sorriso mais diabólico que já havia presenciado. 

      Olhei em volta, vendo que os demais, atentos naquela movimentação logo pela manhã também me encaravam dando risadas. Corri até o mesmo barril que Caym se olhou anteriormente. E lá estava, no meio da minha testa, pintado com o dedo. 

Eu Não Vou Sobreviver (Livro 2)Onde histórias criam vida. Descubra agora