O homem acordou com o rosto encostado na mesa, babava. Estava muito mais frio do que antes, a noite chegara ao seu ápice. Não havia mais o prato embaixo do seu rosto, as velas foram apagadas e lâmpadas brancas foram acesas por todo o celeiro, conferindo boa iluminação àquele lugar, que antes parecia aterrorizante e inutilizado, e agora parecia que todos os dias alguém passava por ali, obviamente havia sujeira, mas agora parecia ser convencional ao local, não era mais sujeira de nojo.
O homem chegou a pensar que estava em outro lugar, mas percebeu que os mesmos objetos estavam nos mesmos lugares, não valeria apena alguém reconstruir um galpão daquele tamanho só para confundir a mente dele, ou valeria? Aconteceu tanta coisa com ele, que era só mais uma pessoa convencional, porque não poderia também isso ocorrer?
Um ardor subiu-lhe o braço esquerdo, o homem teve um imenso dejavu e seu coração disparou por conta da lembrança, um lapso de lembrança adentrou seus pensamentos e se desfez rapidamente, e ainda assim trouxe à cabeça do homem todo o medo por qual passara anteriormente. Mas... Estava tudo tão calmo, tão quieto, até o irritante grilo havia parado de cantar. Pensou que a tempestade poderia estar por vir após a calmaria, não seria a primeira vez pela qual passaria por situação semelhante.
Levantou o braço e o pôs encima da mesa, estava sangrando, mais uma parte do seu corpo havia sido multilada, mas não parecia ser grave, ao menos era bem mais confortável - ou menos desconfortável - do que os cortes em sua perna.
Não havia bilhetes em lugar algum, dizendo o que ele deveria ou não fazer, luzes acesas, velas apagadas, celular no bolso. Tudo estava bom demais para ser verdade, mas o homem aproveitaria essa calmaria para tentar sair dali o mais rápido que conseguisse, antes que toda a desgraça que o rodeava voltasse.Levantou-se.
Foi brutalmente arrastado para o chão.
Assim que caiu soltou um grande grito, sua perna machucada foi a parte de seu corpo que encostou primeiro no chão, voltou a passar a sensação de que estava queimando. O homem não entendeu o efeito chicote que havia recebido, era como se algo tivesse puxado seu pé para que não fosse embora da mesa. Olhou para o pé e percebeu que uma corda estava presa nele, estava frouxa, não daria resistência para retirar o pé de dentro dela. Do lado do pé da mesa no qual estava presa a corda havia mais um bilhete "Isso é só para te lembrar que você sempre estará preso em nosso amor, mas não quero te machucar mais - ♡".
O homem não conseguia mensurar a enrascada na qual havia se metido, não acreditava que para sempre teria que sofrer com essa maldição. Ele só queria voltar para casa e poder se livrar do medo que o acompanhava, no entanto dali em diante não teria paz, para onde fosse o medo lhe acompanharia.
Tirou a corda do pé, levantou-se e se dirigiu até a porta do celeiro, a mesma que ele tentara abrir anteriormente. Mais uma vez estava trancada, nem tudo era flores, apesar do lugar estar bem menos amedrontador, o homem ainda estava trancado ali dentro. O primeiro andar estava todo à sua vista, não parecia haver outro lugar para fugir. Qualquer madeira da parede provavelmente seria quebrada com alguns chutes, mas se estava difícil para andar, para chutar estava impossível.
A única opção que restava era subir ao segundo andar, que não aparentava estar iluminado. Lembrou-se de que a ameaça veio de cima da última vez. Decerto a mulher planejou tudo muito bem, até mesmo como conter os movimentos do homem apenas afetando o psicólogo dele. Ali embaixo estava muito confortável, havia luz, ele conseguia notar qualquer ameaça que aparecesse, já conhecia o lugar. Se quisesse sair dali teria que enfrentar o desconhecido e o medo que o afligia.O homem hesitou, mas não desistiu, já havia perdido coisa demais, apesar disso sua maior vontade era ver seu filho, não desistiria de sair dali, o homem não havia dito que passaria a noite fora, esperava que o filho estivesse dormindo, se não com certeza estaria surtando. O homem começou a subir a escada, a madeira fazia barulho a cada degrau que subia.
"Vou estar sempre te observando" - a voz da mulher ecoou na cabeça dele, mesmo nunca tendo ouvido ela falar isso.
O homem balançou a cabeça para tentar expulsar a voz de seus pensamentos. O andar superior também estava cheio de ferramentas rurais e caixotes, mas as coisas ali eram menores, provavelmente a estrutura não aguentaria muito peso.
Uma caixa de som estava ao fundo daquele andar, uma vela estava próxima a ela, iluminava a madeira da parede a qual estava perto, parecia haver um alçapão, a madeira estava recortada em um quadrado de meio metro por meio metro, estava entreaberto. Os seus músculos atrapalhariam sua passagem pelo alçapão, mas ele se espremeria se fosse necessário, isso seria o de menos.
Assim que deu o primeiro passo no andar superior as madeiras fizeram barulho, era desconfortável, a cada passo que dava parecia que a estrutura iria despencar e ele cairia de uma altura consideravelmente grande, andava devagar para fazer menos força no piso mofado.
O som da música aumentava conforme ele se aproximava."Baby, não maltrate meu coração
Baby, não me faça mal
Quero meu rosto no seu peito
Quero seus carinhos na minha peleNão machuque meu frágil coração
Não me largue na solidão
Baby, não machuque meu coração
Não solte a minha mãoVamos ser como Romeu e Julieta
Eu entrego minha vida
Para viver eternamente com você
Eu entrego minha vida, se for com vocêPosso ser o seu anjo que desceu do céu
Ou o seu demônio que subiu do inferno
Podemos viver nosso amor para sempre
Ou eu posso fazer sua vida ser um inferno"A música parecia ter sido feita no improviso, a voz era muito sintetizada e distorcida, a batida era bizarramente mal feita, mas isso conferia um ar de insanidade ainda maior para a canção. Aparentava ter sido feita exclusivamente para o homem, com as palavras certas para adentrarem em sua cabeça e nunca mais saírem.
Andou até o alçapão, que realmente estava entreaberto, o frio vento da noite bateu em seu braço, e servia como navalha para atiçar seus cortes. Passou evitando olhar para a caixa de som, a música se repetia em um ciclo sem fim. Abriu o alçapão, havia uma pequena tábua de madeira de quarenta centímetros de largura, que dava em uma escada de mão em uma de suas extremidades.
Com dificuldade o homem desceu, finalmente estava fora do maldito celeiro, ao chegar no chão olhou ao seu redor, havia um casarão a alguns metros do celeiro, janelas quebradas, portas pela metade, cercas de madeira arrebentadas, paredes caindo ao pedaço.Noite de lua cheia.
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