Parte V

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           Quando olhou para a lateral do galpão o homem se espantou, seu carro estava estacionado bem ali, mas, como havia parado ali? Porque perderiam tempo de levar seu carro até ali? Caminhou até o veículo. A perna manca. Braço machucado. Parecia uma marionete andando.
            A chave do carro estava lançada ao chão, perto da porta do motorista, a mulher havia preparado tudo para ele, até mesmo para que ele pudesse sair dali, no coração dela aquilo serviria como um ato de pena e compaixão, que deveria ser visto com grande gratidão pelo homem. Não havia sido fácil dar tudo de mão dada para o homem, mas isso seria sua prova de amor, ou a prova de que ela conseguiria fazer o que quisesse com ele.
            O homem abriu a porta, sentou-se no banco, apertou a embreagem para poder dar a partida, gritou.

-Caralho, ela pensou até nisso, não acredito - falar sozinho já era mania dele.

            O carro do homem era manual, sua perna esquerda e braço direito estavam machucados, justamente o que ele usaria para trocar de marcha, a mulher encontrara muitas formas de torturar o homem sem ter que machucá-lo diretamente, não gastou todas as fichas no primeiro encontro, ainda teria outras possibilidades para usá-las. A música bizarra tocava também no carro, o homem tentou desligar o rádio, mas o botão não funcionava, seria sua companhia nada agradável para a viagem.
            Não restavam opções, estava muito escuro fora do galpão, a lua cheia era toda a iluminação que ele tinha, e era muito pouca, a ameaça poderia vir por todos os lados e ele não espararia isso acontecer. Acelerou o carro, procurando uma saída, havia uma estrada de cascalho cercada por muitas árvores, era a única saída. Os faróis do carro iluminavam bem a estrada, mas ele não se permitia olhar para o lado, o breu era tão intenso que parecia engolir o carro, o escuro não lhe trazia boas memórias.

"Estou te observando" - era o que ele ouvia vindo do escuro, estava alucinando.
             
           O foco que mantinha na estrada o impedia de pensar nas suas feridas, que ainda o atrapalhavam, mas ele evitava pensar. Havia um ponto positivo na estrada de terra estreita: ele não precisava trocar as marchas, ia a uma velocidade constante. Olhou no relógio do carro, já eram 4h30, pensou no filho e rezou para que ele estivesse dormindo, o coitado não merecia passar por essa aflição. A preocupação servia para ofuscar os outros problemas que ele tinha, não eram poucos.
           Vinte minutos depois ele avistou as luzes da estrada, cada curva da estrada de terra era um aperto em seu coração e uma nova voz aparecia em sua cabeça falando sobre o que deveria ou não fazer. Estava grato por poder sair de dentro do amontoado de mato e escuridão, era a primeira vez que sentia qualquer sentimento bom em algumas horas. A angústia rapidamente retomou o lugar da gratidão e ele pisou fundo no acelerador, cada segundo era precioso. Ignorou a dor, os pensamentos ruins, a maldita música; teria muito tempo para pensar nisso depois.
            O homem já conhecia a pista de asfalto, mas nunca tinha avistado aquela estrada de terra por ali, provavelmente não tinha reparado. Estava a poucos quilômetros de casa.
            Enquanto ele passava por aquela mesma pista e nunca reparava na entrada que levava à fazenda, a mulher procurava incessantemente algum lugar que servisse as suas pretensões. A vida sempre largou o homem ao azar, entre tantas opções ele fora escolhido para servir de cobaia, para ser o fantoche que a mulher tanto queria, para atender a sua psicopatia e a sua sede incessante pelo sofrimento alheio.
            A fazenda abandonada era o lugar perfeito, distanciada de tudo, escondida. O homem poderia implorar por ajuda o quanto quisesse, ninguém ouviria, exceto ela, e isso apenas causaria o riso nela, nada mudaria. Já planejava o que faria com o homem no próximo encontro, incessantemente pensava em como se divertir em detrimento do homem.
            Se certificou de fazer com que o homem fosse obrigado a retornar para ela, com o rabo entre as pernas e sem hesitar, não tinha provas para denunciá-la, aliás nem sabia de fato quem ela era. A mulher tinha pensado em cada detalhe para acabar com a vida do homem enquanto ela sentisse prazer com isso, depois poderia se livrar dele como se não fosse nada.

            O homem chegou na rua de casa, o relógio mostrava as horas: 5h30. A luz dos postes rompiam a escuridão que reinava antes do amanhecer, o silêncio do fim de madrugada de domingo era tudo o que se podia escutar. Chegou na frente de casa, tudo parecia normal por ali, desceu do carro e pegou o molho de chaves para poder destrancar o portão. Não encontrou a chave, nem a do portão e nem a da casa.
            O homem se desesperou, procurou alguma maneira de abrir o portão, notou que as chaves estavam jogadas no chão da garagem, a uma distância que ele conseguiria pegar.
            Ele tomou as chaves em sua mão, destrancou o portão e andou o mais rápido que sua perna permitia, destrancou também a porta da frente da casa. Todas as luzes estavam desligadas, acendeu-as. Aparentemente tudo estava normal, as cadeiras na mesa estavam arrumadas, as louças lavadas e guardadas, os controles do videogame estavam na posição convencional que o filho arrumava.
            O homem foi até o quarto do filho e abriu a porta. O lençol estava bagunçado e o menino não estava no quarto, havia três velas em cada lado da cama e uma correspondência em cima dela, o homem pegou a carta desesperado e leu.

"Você sabe que eu não faria mal a ele, não é? Não me importo de receber suas visitas, venha a mim assim que quiser. Nao se esqueça, sempre estarei te observando."

À luz de velasOnde histórias criam vida. Descubra agora