04 - Pequenos Grãos em Pratos Claros

24 0 0
                                    

Antes de prosseguir, é necessário explicar algumas coisas: Scarborough era uma cidade relativamente pequena, localizada no extremo norte do litoral centro-oriental da Inglaterra, entre alguns promontórios e as praias banhadas pelas águas frias do Mar do Norte. No passado, a cidade havia sido muito mais importante do que naqueles tempos, mas, ironicamente, o fim do Império Britânico acabou favorecendo-a, já que a antiga feira voltou a ganhar relevância. Com a impossibilidade de roubar, pilhar e escravizar outros povos e terras do mundo, a Inglaterra se viu obrigada a retomar a produção e o comércio honesto, práticas que os anglos há muito haviam esquecido.

Voltando a Scarborough, é importante destacar que, como local tradicional, era também conservadora, o que sempre implica grandes doses de hipocrisia. A combinação de uma cidade que atraía cada vez mais comércio para sua feira e seu porto, enquanto mantinha uma sociedade conservadora, gerou oportunidades que Dario soube aproveitar. Ele não era apenas chef de um restaurante bem reputado; na verdade, ganhava muito mais dinheiro com outros negócios paralelos, de reputação bem menos ilibada, porém muito mais lucrativos.

As oportunidades — ou, como diria Maquiavel, a Fortuna — podem surgir dos eventos mais inesperados. No caso em questão, a restauração da independência da pequena Dalmácia, junto ao Mar Adriático, forçou um número considerável de croatas e albaneses a deixar a região, e uma parcela significativa deles acabou indo parar na Inglaterra. Para essas pessoas, em sua maioria humildes e sem posses, exceto pela disposição para o trabalho e, em alguns casos, pela beleza, era urgente ganhar dinheiro para si e para suas famílias. Acabou acontecendo que muitas moças tiveram que lidar ao mesmo tempo com necessidades urgentes e oportunidades explícitas; Dario convenceu algumas a equacionar essas questões e, inclusive, teve sucesso no patrocínio desse comércio, algo com o qual Aurora nem sonhava.

Dessa forma, graças ao dinheiro que ganhou em segredo, prostituindo mulheres e adolescentes do Adriático, Dario conseguiu, sem muita dificuldade, comprar bilhetes para uma cabine na primeira classe de um navio luxuoso. Na primeira noite da viagem, ele foi reconhecido pela chef inglesa como um grande pasteleiro e convidado a conhecer a cozinha e o preparo dos pratos.

Quando viu a desenvoltura com que aquelas pessoas picavam rins suínos, conservados em salmoura de vinagre com açúcar, em pequenos cubos, e os refogavam com gin e sementes de cominho e coentro, ele se arrependeu da decisão. Mais do que isso: como se não bastasse o horror, ele viu os trabalhadores da cozinha do navio acrescentando pedaços de uma espécie de linguiça feita com sangue cozido, feijões, ervilhas e molho de tomate, generosamente temperados com açúcar mascavo e vinagre de caqui. Quando o cozido estava quase pronto, ainda adicionaram folhas de salsão.

Vendo toda aquela iniquidade, ele acabou se lembrando da simplicidade com que o grão-de-bico se transformava em homus, e do tahine que sua avó fazia em seguida, ao misturar os dois, com um pouco de cominho, a quantidade certa de alho e um fio de azeite. Os pães que ele mesmo fazia também vieram à sua mente. Ficou pensando nessas coisas e perdeu oito quilos em pouco mais de três semanas de viagem, pois alegou ser de uma seita islâmica radical e, durante toda a viagem, só comeu pão ázimo e bebeu água.

Quanto a Aurora, ela era inglesa e, portanto, comida horrível sempre fizera parte do seu cotidiano. Mas não era nisso que pensava enquanto colocava um vestido de tons azuis que combinavam perfeitamente com seus olhos. Ela não gostava do mar, por mais que tivesse vivido quase sempre ao lado dele. Era como se fosse um vizinho indesejável, daqueles tipos imundos com pensamentos sujos e atitudes inconvenientes. Se fosse uma pessoa, o oceano seria alguém horrível, refletia.

Dario estava dormindo, mas, como as malditas águas subiam e desciam, ela não conseguia pregar os olhos. Que criaturas haveria naquelas águas escuras e profundas? Qual seria a profundidade? Mil, duas mil, três mil jardas?! Seu país já fora um império, antes de os mexicanos o destruírem. Na verdade, eles o naufragaram, sem piedade nem culpa. A pequena Inglaterra, seu lar, até já havia sido uma monarquia. Mas, nisso, os mexicanos fizeram bem — afinal, quem precisava de um rei?

De toda forma, após algumas poucas semanas de uma viagem desagradável, porém tranquila, aportaram em Veracruz. O Mēhxico parecia ser tudo aquilo que as revistas que ela lia contavam: era quente, ensolarado, e o mar era muito bonito! Desceram e já entraram na fila da recepção destinada aos estrangeiros. Ninguém falava persa, mas conheciam inglês e francês, felizmente.

Perguntaram se estavam juntos, se suas intenções eram boas, o que pretendiam com o povo e se desejavam visitar ou morar no país. Assim que informaram que o objetivo era residir no Mēhxico, cada um recebeu um livro com as regras comuns a todas as pessoas que viviam ali; também foram questionados sobre sua origem e habilidades. Diante disso, cada um recebeu um caderno com as instruções dos sindicatos específicos: a Sociedade Sagrada da Comida e a Nobre Fraternidade da Magia, Temperos e Sabores. Foram informados de que a filiação ao sindicato era obrigatória e que sua posição dentro dele dependeria de provas de avaliação a serem realizadas em data oportuna.

Em seguida, perguntaram qual era sua religião e foram informados de que, no país, a expressão religiosa era livre, desde que não ofendesse a terra, as crianças, os idosos e os xamãs. Nesse sentido, não eram permitidos cristãos evangélicos e muçulmanos salafistas; todos os demais eram bem-vindos. Pegaram um táxi e foram até o escritório de residências, onde todas as pessoas que construíam casas ou as tinham para vender se reuniam com aqueles que pretendiam adquiri-las ou construí-las. Decidiram comprar uma casa já pronta, próxima ao mar, para o prazer de Dario e o desencanto de Aurora. A moeda do país era lastreada em prata, mas aceitavam ouro, e o negócio foi concluído sem problemas. Na primeira noite, dormiram em uma estalagem confortável e se instalaram no dia seguinte.

A casa não era muito grande, mas dispunha de um forno de dois fogões, um a gás e outro a lenha. Havia dois quartos, sendo um deles suíte; uma sala ampla, uma cozinha espaçosa, uma copa de tamanho razoável, uma despensa e um cômodo para o templo particular e a biblioteca. O quintal tinha uns 300 metros quadrados. Compraram móveis básicos, nada luxuoso, mas todos de bom gosto. 

Descobriram que tinham dois vizinhos ao fundo e um em cada lado, pois foram recebidos assim que chegaram: três deles eram mexicanos — Júlio, um deles, e dois casais, Cuauhtémoc e Qitla, e Pedro e Ma'rintza. No fundo, à esquerda, havia um casal de europeias: uma occitana chamada Aliènor e uma moça muito bonita da Baixa Saxônia, Ingride. O almoço de recepção foi marcado para o dia seguinte, e todos estavam animados ao descobrir os talentos dos recém-chegados. Após o almoço, Aurora foi resolver algumas questões com as autoridades locais para poder instalar sua tenda.

— Bom dia. Qual o seu nome e o seu propósito, por gentileza? — perguntou a senhora na recepção do templo dos registros.

— Aurora Flemings. Eu gostaria de abrir um boticário.

— Perfeito. Conhece as regras?

— Não, senhora.

— São simples: pela venda das coisas sagradas, você paga tributos ao templo local; pela venda das coisas essenciais, você paga o tributo básico; e pela venda dos itens de luxo, o tributo especial, que é distribuído proporcionalmente aos pobres do país. Tudo o que não for desta terra você pode começar a vender assim que abrir sua banca; já o que for daqui, você só pode comercializar após fazer o curso do Respeito. O livro das normas explica tudo. Tome este aqui.

Após receber o folheto, Aurora foi informada sobre o curso que deveria fazer para vender os produtos da terra. Ela e Dário, como era lícito esperar dos que ganham oportunidades, saíram para comemorar, o que fizeram numa pequena, animada e colorida pucheria.

Aztlán: como tudo recomeçou!Onde histórias criam vida. Descubra agora