09 - Alguns dias ordinários

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Aurora estava com uma ressaca horrível: muito pulque, altitude elevada, uma combinação ruim, definitivamente. Felizmente, uma curandeira de Xochimilco fez a recomendação salvadora: amassar uns brotos de mamoeiro com um pouco de sal e misturar na água. O corpo reagiu bem rápido, mas depois do vômito, ela se sentiu outra mulher. O restante do dia dedicou-se a beber líquidos. Na mesma tarde, dirigiu-se para a vizinha Tenochtitlán.

Tão logo chegou, conseguiu quem a levasse até a escola do Templo das Bruxas, mas não se hospedou na cidade, e sim próxima ao Templo, que na verdade ficava no estado de Tlaxcala, em Zultepec, uma cidadezinha ao lado de Tenochtitlán. Como era um lugar relativamente afastado das principais atrações da metrópole de 7 milhões de habitantes, muitas pessoas das cercanias não estavam acostumadas a alguém como ela, de pele alva, cabelos claros e olhos azuis.

Mas, indiferente à agitação das crianças e como a noite estivesse especialmente quente, ela resolveu ir até uma pulqueria, beber um pouco e ouvir umas histórias dos locais, inclusive para rebater a ressaca da noite anterior. Seu náhuatl não era dos melhores, mas era o suficiente para conseguir estabelecer uma conversação, e as pessoas em geral gostavam dos esforços dela por falar a língua nativa, e não a dos invasores. De repente, aparece uma senhorinha e pede um copo de pulque e umas tortilhas para Aurora, pois estava com fome e sede, e não conseguiria nenhum dinheiro enquanto não terminasse de fazer um chapéu, que por sinal já estava quase pronto.

— Claro, vovozinha, mas só se eu puder desfrutar da sua companhia.
As duas sorriram, e Aurora então perguntou:

— Bonita, essa aldeia. É muito antiga?

— É e não é — respondeu a senhorinha enquanto tomava um gole de pulque e trabalhava no chapéu. — Foi reconstruída em cima da cidadela alcohuana original. Nesse lugar, 550 homens de Hernán Cortés foram sacrificados e a maioria deles devorados, em vingança ao assassinato de Cacamatzin, governante da cidade de Texcoco, no tempo da invasão castelhana.

— Como assim, vovozinha? Me conta a história?!?

— Então, aconteceu há muito tempo, na época da invasão. Quando uma força espanhola foi derrotada de surpresa pelos alcohuas, e toda a guarnição deles foi capturada, um a um eles foram colocados sobre a pedra sacrificial, completamente conscientes, e o coração deles foi arrancado. Naquela época, eles não desperdiçavam a carne, como hoje, e eles acabaram sendo comidos cerimonialmente com pulque, igual a esse que estamos bebendo. Depois, fumavam marijuana vermelha e dançavam até a exaustão. Os ossos maiores e mais bonitos eram usados para decoração. Foi assim.

— Uau, e o que aconteceu com eles depois?

— Os daqui, especificamente, foram derrotados e posteriormente torturados e mortos, em nome do novo e piedoso Deus do perdão e do amor reinante que os invasores trouxeram consigo.

— Olha, se esse Deus for mesmo de piedade e amor, ele deve ter ficado triste...

— Por isso ele bebia quando esteve com vocês, né? Aliás, Ele teria gostado de pulque.

— Verdade, raça difícil, a nossa. Quanto ao pulque, no fundo, ao dar corda aos eventos que criaram o homem e o agave, Ele tinha ideia do que queria, então sabia...

— Você parece uma boa pessoa, Amanhecer...

— É Aurora, vovozinha. E muito obrigada. Deus ajude que eu seja como você diz que eu sou e também a pessoa que o meu cachorro acha que eu sou. Você ainda tem fome e sede?

— Não, mas tenho um chapéu pronto. Quer de presente?

— Vovozinha, este chapéu é lindo, mas você precisará comer e beber outras vezes, não posso aceitar.

— Acredite, eu não precisarei. Pode ficar tranquila.

— Então eu aceito se eu também puder te dar um presentinho.
E antes que a boa senhorinha negasse, Aurora embrulhou umas moedas de prata em um paninho muito bonito e deu para a senhorinha, ao que a velhinha deu para ela um lindo chapéu de palhas cremes e penas que as aves deixavam cair no chão.

— Minha boa senhora, eu só sei que por algum motivo você me lembra muito a minha finada mãe. Mas eu ainda não sei seu nome...

— Ah, a Morgana; boa pessoa, eu a conheço. Mas não se preocupe, ela está em um lugar melhor...

— Como assim, você conheceu a minha mãe?!?

— Eu conheço todas as pessoas, filha. Aliás, as moedas que você me deu ultrapassam em muito o valor do chapéu. Aceita pelo menos a metade delas de volta, para me deixar feliz?

Para não contrariar a enigmática senhora, Aurora aceitou as moedas, mas sentiu que elas estavam bem mais pesadas. Quando as viu, entendeu a razão, e antes que ela pudesse falar qualquer coisa, a anciã emendou:

— Então, é que moedas de prata me trazem lembranças ruins, por isso as transformei em ouro...

Aurora estava impactada, mas perguntou:
— Qual é mesmo o seu nome, anciã?

— Você sabe quem eu sou. Tenha um ótimo dia! E pode pedir mais um pulquezinho, não vai ser isso que vai te matar, garanto para você.

Aurora não entendeu bem o que acabara de acontecer, mas obedeceu e pediu mais um pulque e ficou conversando sobre amenidades com a proprietária da pulqueria até o tempo refrescar um pouco, e lá pela décima quinta hora resolveu voltar para a estalagem. Ao passar ao lado de algumas baunilhas em flor, parou para lhes conferir o perfume, mas o cheiro que sentiu era o de sangue. Chegando na estalagem, comentou o fato com a proprietária, que aconselhou a ir, no dia seguinte, ter com alguma sacerdotisa de Patecatl, o Deus da Terra dos Remédios e também da medicina, esposo de Mayáhuel, a deusa criadora do peyote, um cacto muito usado em cerimônias religiosas e rico em mescalina, uma substância psicotrópica, bem como pai dos Centeotl, os deuses do pulque, deuses ébrios, imorais e violentos.

Tão logo o dia amanheceu e antes mesmo da primeira hora, ela se levantou de súbito, temendo por algo que ela não sabia bem o que era. De toda forma, esperou o dia nascer direito, comeu alguns pães de milho e se dirigiu ao Templo das Bruxas. Quando ficaram sabendo que ela não sabia fazer pulque, foi aconselhada a aprender, e depois das lições no templo, ficou sabendo que a anciã da pulqueria ao lado da estalagem seria uma ótima mestra.

Depois das primeiras lições e do almoço, por sinal muito bem preparado, ela respondeu a uma série de perguntas do círculo das mulheres, pois muitas estavam curiosas sobre como era a vida entre os brancos na Europa e achavam interessante que ela soubesse náhuatl. Tagarelaram até a oitava hora, quando as lições recomeçaram. Na décima primeira hora, as atividades do dia terminaram, e ela foi atrás da sacerdotisa, como lhe fora recomendado.

Apesar do horário, a sacerdotisa resolveu recebê-la, inclusive parece que até mesmo a esperava, por um sonho que tivera. A conversa entre as duas durou até a décima quarta hora, quando a sacerdotisa lhe deu umas poções e a recomendação de voltar em todos os quintos dias da fase lunar, para que ela pudesse ser melhor avaliada. Aurora ficou meio desconfiada, mas aceitou a sugestão.

Uma vez na estalagem, já tarde da noite, tomou a primeira poção, como lhe fora ordenado, e rapidamente adormeceu, tendo sonhos muito estranhos, mas quase lembranças de sua vida em Scarborough, que se misturavam com o coaxar de sapos e visões da lua dançando no céu. Ainda no sonho, sua avó, que mal chegara a conhecer, dá para ela uma maçã e diz, enigmaticamente:

— O julgamento é falho quando não estamos apaixonados. Só vemos bem pela lente da paixão. As coisas que você ama, fale com orgulho. O desejo exige coragem e a vida, inspiração.

Aurora acordou suada, mas a tempo de se banhar com as ervas da segunda poção e ir para o templo, sem sequer imaginar o que a aguardava naquele dia, o que, aliás, acontece com todas as pessoas do mundo, mesmo que _fingindo_ elas queiram ignorar a Incógnita.

Aztlán: como tudo recomeçou!Onde histórias criam vida. Descubra agora