19 - As Incertezas da Morte

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Aurora, surpreendentemente, amou o altiplano: a aridez colorida, o céu absurdamente limpo, o cheiro da terra que era diferente, mas agradável. Tsipekua, mesmo morando em uma serra, odiava a planície árida e sem sombra do Altiplano. As duas sabiam que já haviam passado dos 3.000 metros porque a dificuldade de respirar era muito evidente. Mascar folha de coca amenizou bastante os sintomas, diminuindo também o cansaço, a sede e praticamente eliminando a fome. A base da montanha ficava a pouco mais de 4.000 metros. Subiram mais 1.000 metros, e a guia que contrataram sugeriu que acampassem lá por pelo menos uma semana, para que elas pudessem se aclimatar à altitude.

— Tão alto como estamos — disse Tsipekua —, a respiração, caso você esteja mascando coca, hidratada e quieta, é complicada, mas relativamente tranquila. No entanto, é necessário dormir bem e comer pouco. Hidratar-se bastante, mas devagar. Conversar fica difícil porque é cansativo e também porque o raciocínio fica embotado, com ideias aleatórias passeando aqui e ali.

— Do jeito que você fala, parece razoável. Só que não é bem o que eu estou sentindo, devo te confessar. Meu estômago está enjoado; respirar me deixa exausta, eu quase sempre estou confusa, lenta e exausta...

— Então, é exatamente assim. Vai passar.

— Tão logo eu morra em algumas horas, não é mesmo?

— Vamos firmar acampamento por aqui, que é mais protegido do vento. Uns três dias à base de chá de coca vão melhorar um pouco seu aspecto geral. Eu diria que, você sabe, eu te amo, mas você está um pouco meio horrível...

— Você fala porque meu cabelo está parecendo uma palha seca de milho, porque minha pele está ressecada ou porque eu estou com olheiras?

— Não, carinho, não é isso. Você continua linda, só que meio desidratada.

Para passar o tempo, Aurora desenhava, e Tsipekua entalhava e esculpia bonecos na pedra macia da montanha. Passada uma semana, as três estavam adaptadas e chegaram à conclusão de que a melhor estratégia era partir às 2h30 da madrugada, chegar ao topo do vulcão, procurar os restos da irmã de Tsipekua, recolhê-los e voltar pelo Chile.

Quando deu o horário combinado, Aurora olhou no termômetro e fazia -16°C. Apesar do horário, estava relativamente claro, porque a luz da lua cheia refletia na neve e na rocha, deixando tudo bastante iluminado. Partiram e, depois de duas horas de caminhada, estavam a 6.000 metros. Ironicamente, foi Tsipekua que colapsou. Restaram Aurora e a guia. Faltando meia hora para o início do dia, elas chegaram a 6.500 metros de altitude; faltavam menos de 300 metros, e Aurora sentiu que poderiam conseguir.

Sentindo um enorme frio e mais que uma necessidade, um desejo compulsivo por ar, era de se esperar que Aurora estivesse desesperada. Mas não. Ela sabia que estava morrendo e até tinha certeza de que isso iria acontecer, mas nunca teve tanta paz e tanta calma em toda a vida conturbada e difícil que havia tido. Não era como ser apenas uma adolescente e aceitar o estupro, como no passado; era diferente agora. 

Sentia o corpo, mas parecia que este não lhe pertencia, e a alma de repente abarcava o mundo; tudo era calma e quietude. Não havia força interior pedindo para ela lutar, nem tampouco desistir, nenhum mundo lhe dizia nada. O significado das coisas havia se resumido a resistir, e parecia a ela que, no fim, ela voltaria a fazer parte de tudo. Só sentiu falta de Dario, da sua ternura. Então, o ar extremamente seco fez com que suas narinas sangrassem, e a certeza absoluta de que ia morrer naquela montanha aumentou. Aurora sorriu ao lembrar dos pais dela.

Contra todas as expectativas, no entanto, na segunda hora do dia, as duas chegaram ao topo e encontraram os restos de três pessoas. O mais antigo era de uma mulher adulta, devia ser a irmã de Tsipekua. Os outros dois corpos mumificados eram de crianças, e resolveram deixá-los lá. Com cuidado, colocaram o corpo incrivelmente bem preservado em um saco funerário e começaram a descer. Aurora sabia que quatro em cada cinco mortes em montanhas aconteciam na descida, de modo que foram bastante cautelosas.

Na quarta hora, as duas alcançaram o local onde estava Tsipekua, que já havia melhorado. Estava claro que teriam que dormir na montanha, pelo que a guia começou a descida sozinha até o acampamento base, para deixar as coisas preparadas. Ficaram Aurora, Tsipekua e a irmã morta dela.

— Não lhe arrancaram o coração, por isso a alma dela não conseguiu descansar — disse Tsipekua. Com muito cuidado, encontrou a joia onde antes havia o estômago da irmã, pois, como ela havia imaginado, a mesma havia engolido-a para não entregá-la aos captores. 3.800 anos antes, quando o avião que saiu para a América do Sul finalmente havia conseguido pegar de volta a pedra que haviam roubado do clã de Tsipekua e levado do planalto mexicano para os Andes. Sim, finalmente ela conseguiu reaver a pedra e o corpo da irmã. Foram dormir, inclusive porque, de noite, a temperatura cai facilmente para 20 graus negativos nessas condições, de modo que resolveram acender o fogareiro para preparar um chá. E aí ela teve um insight:

— Estava aqui pensando: nossa viagem deu certo, pois, apesar dos reveses, estamos as duas bem e conseguimos o que viemos buscar. Devemos fazer uma oferenda a algum Deus, porque nós, mortais, pelo menos devemos ser gratos. Tive uma boa ideia para amanhã!

No outro dia, desceram até o acampamento que a guia havia deixado pronto, prepararam o corpo da irmã de Tsipekua e resolveram tomar uma cerveja de milho para ter força para a descida. Quando as duas estavam mais ou menos felizes, Tsipekua resolveu cochilar dentro da barraca, enquanto Aurora ficou do lado de fora, admirando a paisagem sem nuvens e uma lua esplêndida que se erguia. Só depois foi dormir e, ao se levantar, não viu a guia, apenas Tsipekua, que parecia estar mal.

— Tsip, você está bem?

— Ela queria ir, e eu a sacrifiquei aqui mesmo, enquanto você se levantou para ir buscar os pãezinhos. Ela estava muito agitada, pelo que Aurora simplesmente segurou na mão dela e sugeriu que respirassem juntas, que estava tudo bem.

— Sim, eu a sacrifiquei. Mas não importa muito o que eu fiz, mas para quem: Atlacoya, esse coração que ainda pulsa é para você!

Aurora percebeu que ela precisava de um abraço, mas não era o momento. De maneira muito calma, preparou um chá de camomila para a amiga e tentou conversar amenidades, até que simplesmente cantou, em voz baixa, cantigas de ninar. Deu certo, a amiga adormeceu.

Depois disso, um silêncio absoluto reinou sobre a montanha, até que um novo dia amanhecesse e logo em seguida uma grande tempestade de areia surgisse, vinda de baixo. No meio desta, para surpresa das duas, estava a própria deusa da seca e da infertilidade, que disse:

— Há quantos séculos não derramava o sangue de um coração ainda fresco em meu nome! Quais são os nomes das minhas duas novas amigas?

Tsipekua as apresentou, respeitosamente.

Sem saber, Aurora e Tsipekua haviam arrumado uma nova companheira de viagem. Na verdade, duas, pois Teotihuacan, a misteriosa deusa-aranha da qual ninguém conhecia o verdadeiro nome, acompanhava Atlacoya eventualmente, como uma sombra fugidia. De toda forma, havia muita coisa a ser feita, e no mesmo dia elas começaram a descida da montanha para finalmente voltar ao México.

Foram necessários dois longos dias descendo por córregos intermitentes, mas que estavam correndo no momento, até chegarem ao assentamento de Yunguay, onde pegaram um transporte até Antofagasta. As duas deusas quase não se faziam mais ouvir, e as mortais não tinham mais força alguma. A chegada foi um alívio imenso, e a espera de dois dias até que um navio confortável as levasse até Lima, bem como o voo que as conduziu de volta a Tenochtitlán, foram tranquilos. Tsipekua parecia bem, e o cabelo de Aurora brilhava novamente. Foram dias felizes e noites animadas.

Aztlán: como tudo recomeçou!Onde histórias criam vida. Descubra agora