2. um bicho me mordeu

26 7 2
                                    

Já era noite quando Ana decidiu trocar de roupa e descer para a família ver sua mais nova obra de arte. Abriu o armário para pegar seu pijama e logo sentiu aquele cheiro meio amadeirado, meio novo e velho ao mesmo tempo, aquele cheiro único: o cheiro de livro. Ficou pensando que, se realmente a conhecessem, lhe teriam dado um livro como presente de aniversário. Ou filmes. Seria bem mais fácil dar DVD's. Ou CD's, até. O Teatro Mágico estava pra lançar seu novo CD e ela ficaria bem feliz em ganhar ele.

Qualquer coisa, menos um salto alto. Se ela quisesse ter um salto, ela mesma teria que ir comprar, pois era exigente quando se tratava de pés cansados.

Ela se olhou novamente no espelho e sorriu. Esfregou o rosto, respirou fundo e se preparou para encarar sua família. Seu pai fazia tempestade em copo d'água, e mesmo sendo só um cabelo novo, ele com certeza faria.

—Adorei o cabelo novo. — disse o irmão dela, tentando descer as escadas. — E-girl. Maneiro.

Ana revirou os olhos, Eduardo sorriu daquela maneira que consegue te acalmar e te deixar feliz ao mesmo tempo. Ele tinha esse dom. Ana também, mas ela não usava mais seu feitiço já tinha um tempo. Talvez isso tenha chamado a atenção de Daniel: o sorriso dela.

— Mirei na Jessie J e acertei na E-girl.

A mesa já estava posta quando os irmãos se sentaram para jantar. Era macarronada, mas só porque era tecnicamente o aniversário de Ana, pois era uma segunda-feira, e as macarronadas só podiam ser aos domingos.

Sua mãe logo reparou em seu cabelo, arregalou os olhos e lhe lançou um sorriso, tal qual Eduardo. Era coisa de família. Após alguns segundos, seu pai percebeu que tinha alguma coisa de errado. Ele sempre fazia isso mesmo, se uma coisa não estava como ele queria, essa coisa estava errada. No lugar errado, na hora errada, na filha errada. Mas, por incrível que pareça, ele não falou nada, apenas pigarreou.

Ana e Eduardo se entreolharam, balançando a cabeça e sorrindo. Ela finalmente deixou seu corpo relaxar.

Isso era ter dezoito anos.

***

Ana acordou com o despertador que sua tia lhe enviara de presente. Eram dez da manhã e não havia absolutamente nada para fazer. Aliás, nada bom para fazer. Ela acordou sonolenta, exausta. Remontara toda a cena da noite anterior na cabeça, em forma de filme: começou com uns takes do bolo em forma de filmagem dos anos oitenta. Ela fazendo um pedido e sorrindo, todos animados. Corta pra Daniel lhe dando um presente e um baita beijo. Rebobina pra ele perguntando qual foi o pedido dela, e ela ficando com cara de paisagem. No fundo, uma voz dizendo "'Ir embora de vez' não era muito animador para falar".

Corta para a imagem de uma tesoura e intercala com Ana se olhando no espelho e ela cortando o próprio cabelo. Então corta para os fios caindo no tapete lilás do quarto dela.

Foi como um filme mesmo.

— Agora falta a parte dois. — sussurrou pra ela mesma.


A Praça Amarela ficava a duas quadras de sua casa. Geralmente seus colegas e seu namorado ficavam lá, fazendo nada. Alguns já vinham depois do trabalho, outros emendavam pro dia seguinte, ou iam direto da aula. Era o mesmo grupo que eles tinham no colégio, a mesma turma, que falavam sobre as mesmas coisas, se vestiam parecidos, tudo que Ana já estava cansada de viver.

Ainda não havia se acostumado com o cabelo novo. Antes de sair, sua mãe a ajudou a consertar algumas partes que estavam tortas. Infelizmente a franja ficou curta demais mesmo e não teve jeito. Tentou fazer um pequeno rabo de cavalo e seu cabelo ficou parecendo um pompom. Daniel vai odiar isso, ela pensou, rindo consigo mesma.

A Noite EstreladaOnde histórias criam vida. Descubra agora