Não suporto mais me imaginar dentro de um ônibus, indo para o trabalho. Não suporto os intermináveis minutos de espera na fila. Para quê? Para o ônibus chegar, estacionar fora da área de embarque, as pessoas se acotovelarem por um espaço exíguo entre a multidão já exaustas na primeira hora da manhã, e a porta do transporte coletivo que chega ao ponto de ônibus lotada de pessoas caindo pelo estribo. Depois da angustiante e frustrante luta por um lugar à porta, perceber que será ali que permanecerá por toda a viagem, até o destino final, o trabalho ou a apoteótica volta do trabalho.
Optei mesmo pela caminhada. É um momento oportuno para experimentar as fantasias da digressão. Caminhar e divagar, que delícia se permitir a tal gozo. Talvez na caminhada sintamos mais o sabor das sensações sobremaneira aguçadas pelo encontro de seu silêncio com si mesmo. Imagino-me agora em um calçadão - seria tão bom se durante meu caminho para o trabalho estivesse um calçadão margeando a orla de uma bela praia! – sentindo a mente pacífica e a cidade calada para mim, os pivetes distantes, os cheiradores de cola ao longe, a PM silenciosa com suas sirenes mudas, a buzina morta e a baunilha do campo transpassada pela maresia do oceano invadindo-me os pulmões com seu aroma delicado e agredido pelo sal.
Por que razão deveria me sujeitar à ida ao trabalho? Na verdade, razão não há, é isso que penso tendo um insight. Imagine a desilusão de entrar em um fórum frequentado por pinguins-rei, cada um soberano em seu condado de gravatas; quanta miserabilidade humana. Quanta pose quando se encontram em festa, medindo-se um ante o outro, esquadrinhando-se para se saber qual advogado é mais graduado entre os ricos. As advogadas, por sua vez, analisando a breguice da outra, inveja sobre inveja, uma superposição de vaidades, um melindre de saltos altos. Os advogados pobres, coitados, nem uma entrevista com juízes para serem esculachados merecem. É degradante acompanhar um advogado pobre desfilar seu terno à moda pastor de igreja de fundo de garagem, gravatinha bege sobretom à camisa cáqui e sapatos que imitam couro gasto. De qualquer modo, advogado, quase sempre, é de uma presunção intangível, que conviver com uma criatura dessas somente desamando-se muito e pondo interesses menores em andares superiores.
Os fóruns, de maneira geral, são desagradáveis. Muito burburinho, muita gente feia, algumas criaturas até perfumadas se apresentam, mas a maioria traja um jardim de flores murchas. Há uma matilha de bizarrices: criança chorando em busca do pai, homens negando seus filhos três vezes, mulher oportunista que quer uma pensão, esquizofrênico interditado, miseráveis desamparados da Justiça que clamam a Deus um milagre que não virá, juízes imbeciloides achando que o rei habita seu asqueroso estômago embalsamado na mais amarga bílis humana. Também há mortos-vivos: meus colegas de cartório – pois é, eu trabalho em um cartório – que, feitos à semelhança de empilhadeiras, carregam maços de processos da prateleira a seu nicho e vice-versa, conferindo e dando andamento às necessidades do procedimento, burocracia, burocracia, burrocracia.
Não sei se essa caminhada é saudável, teria o condão de revigorar-me, ou se essas memórias me intoxicam algo mais do que o de costume. Mas continuo a caminhada, afinal de contas: "Você é duro, José!".
Adeus, tenho de ir Drummond.
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Índios
RomancePlágio é crime: LEI 9.610, DE 19 DE FEVEREIRO DE 1998. Quando homens percebem que as pessoas e que a sociedade que o envolvem são ilusões coletivas e que a matéria tangível é o alimento que envenena a alma, coisas insólitas podem acontecer. A náusea...