Arranha seu ouvido a primeira nota do dia. É o primeiro ruído que rasga a monotonia do ronco contínuo que o vinho da véspera produz quando afrouxa as fibras de sua garganta. Não importa se ele dorme sozinho nem se a prostituta cedeu sua companhia extraordinária por um café da manhã a dois, o que vale é saber-se insolente mesmo que somente na própria presença desprezível. O homem é tão comum sem quaisquer arroubos de uma vivência mais desafiadora, que descrever a cena da qual poderíamos ser protagonistas pode ser perda de tempo. Contudo, é obrigação dar ao leitor o início do drama para que ele possa compreender que tudo principia de algo, exceto a criação ou a explosão atômica do Universo, é claro. Deus por si basta em sua mágica, haja vista que sempre ficara lá em cima de olhos e trovões a punho vigiando as criaturas pecadoras. Por outro lado, quem acha que da explosão atômica o Universo se expandiu em fúria calórica cuja reverberação ainda se capta por instrumentos modernos de medição acústica, tem-se de contente por não precisar ajoelhar-se diariamente para o nada e se dizer humilde por ter em Deus seu criador, porque quem acredita em Deus o joelho na terra seria uma espécie de caminho estelar para o lado direito de nosso Senhor, Deus Pai, e o homem que crê na Ciência apenas tem de se levantar da noite para o dia e do dia à noite e descansar e trabalhar; não cogitando em qualquer instante agarrar-se às miudezas da fé, de modo que a dor do joelho não necessita sentir se mais outras ainda virão. Acorde homem, sua música brega já soou em seu smartphone, Wake up!
Tenho, enfim, o trabalho que todos estariam dispostos a ter. E dele decorre o sentido maior de tê-lo conquistado: minha estabilidade em um emprego. Buscar estabilidade norteou minha vida até então. A estabilidade é a palavra que por ora ordena muita gente em sua vida miserável. Todos que precisam trabalhar sentem ecoar nas camadas mais subliminares as sílabas da palavra ES-TA-BI-LI-DA-DE. A ordenação sonora dessas sílabas é a responsável por uma gama de sensações relacionadas a uma satisfação contemplativa de que o futuro estará garantido. Quimera, penso. Talvez, quimera. Sim, uma quimera somente. Quero estabilidade emocional, estabilidade financeira, quero garantir "um futuro melhor"; quantos clichês rasgam minha fonte de dor que jamais dissipa. Estabilidade para quê? São tantas as estabilidades das quais desejamos desfrutar que ter estabilidade se torna por si só um movimento vital instável.
É verdade; não foi fácil; cinco anos dedicados a livros e livros da mais odiosa literatura e da mais rasteira, tão ordeira na sua leitura, que sua regular escrita feria pungentemente o cristalino dos olhos ardidos depois de enfrentar a jornada de oito horas de estudos: vídeos, cursos, leitura, exercícios etc.; quanto esforço para obter uma remuneração que de longe não seria a de um rico; por isso, às vezes calculo que tal esforço hercúleo se empregado em uma semana de negociações de peças de vestuário para a loja própria, provavelmente, renderia mais ao final de cinco anos; seria, então, um investimento rentável e mais prazeroso também, haja vista que se vislumbraria, aprece-me, a forma mais sublime de ser dono do próprio nariz tendo como esteio para a vida a necessidade do trabalho a fim de se obter sustento. Mas não! É melhor ser concursado, saber que após o período de estágio probatório viria o deleite da impossibilidade da surpresa de uma demissão arbitrária, porque a estabilidade - tão gasta já nessas breves linhas - é o escudo do pobre vulnerável trabalhador nacional.
Sim, uma bela e romântica estabilidade, um cargo público, uma gordura extra na barriga, um cigarro largado à mesa – puta merda, não se pode fumar mais nas repartições públicas –, uma camisa de malha desbotada ou uma gravata marrom sobre uma camisa verde-alface, um bigode cinza-amarelado no poente da mísera vida estável. Poderia fotografar-me nessa medonha selfie, poderia, mas não o farei. Essa cara é conhecida, está em muitos cantos, essa cara feia que é rainha da melancolia, desdobramento do desejo e conquista da estabilidade de outrora. Há felicidade nisso: não há, não. Quem aqui falou em felicidade, uma palavra dispensável tanto quanto o amor, porém esta, em relação àquela, goze de mais status, tenha um corte mais profundo, pois amor, além de dispensável, é banal. Definitivamente: felicidade e amor não cabem aqui. Pelo menos por enquanto.
Feriados emendados, ah! gozo silvestre, antegozo das horas vagas que por ti dei a vida mergulhada em uma sopa de letras da lei mais morta-viva que se possa conhecer nesta América latina de fanfarrões caudilhos e presepeiros presidentes alienados da realidade do povo. Importa-me é ser funcionário público e dar aquela emendada. Delícia. Ficar à toa, largado, longe da maçante rotina do cartório. Pasta, fileira, processo aberto, andamento, despacho, Vossa Excelência, vossa excelência o cacete, tu és um filho de Deu como eu sou: sim senhor, já faço, Vossa Excelência, digo assim, estando Vossa Excelência exaperado, amém, amém não, amém é para o padre... sim senhor, vamos lá, cito o réu por carta de aviso de recebimento em mão própria, mas ele é maneta, fodeu, mandarei um e-mail, é cego, mandarei um telegrama, dá na mesma, ligarei para ele, ele é surdo, porra, vá lá, não sou oficial de justiça, eu mandarei finalmente um desses... vá: citado está. Feriado, logo penso... não... isso é outra coisa... logo é tão aguardado... já preciso de outro feriado as férias de trinta dias foram poucas... "ai que preguiça".
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Índios
RomansaPlágio é crime: LEI 9.610, DE 19 DE FEVEREIRO DE 1998. Quando homens percebem que as pessoas e que a sociedade que o envolvem são ilusões coletivas e que a matéria tangível é o alimento que envenena a alma, coisas insólitas podem acontecer. A náusea...