36. Um encontro com o Kukumat, o Deus Dragão

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_  Tsipekua, você pode ir a Coatzacoalcos comigo para receber no porto um carregamento de cacau de Pindorama? Aurora perguntou com uma doçura bastante espontânea.
_ Queria, carinho, mas não posso. A dona Universidade não permite essa semana!
_ Ahhh, então você fica tomando conta de tudo por mim. Em uns três dias estarei de volta, e se precisar, mando um telegrama.
_ Sim, se cuida!

Coatzacoalcos é uma cidade interessante. Com pouco mais de 350 mil habitantes, está situada em uma planície na Baía de Campeche, próxima à foz do rio de mesmo nome, não muito distante de um grande vulcão chamado Tiltepétl, no caminho de furacões e do vento de Tehuano, um dos ventos constantes mais fortes do México. Não era um bom lugar para morrer, mas, depois de ser picada por uma serpente venenosa em um pequeno píer ao lado de um manguezal, Aurora sabia que não havia muito o que fazer. Ela não sabia se ficar ali para que seu corpo fosse encontrado seria o suficiente para evitar que Tsipekua sofresse mais do que o necessário...

_ Você está com medo? Quer ajuda?
_ Que susto! Olha, moço, não há muito que você possa fazer por mim. Só não queria que doesse tanto.
_ Dói, não é?
_ Bastante. Vai demorar muito?
_ Pelo seu estado, cerca de uma hora.
_ Você tem alguma bebida ou algo que pelo menos diminua meu sofrimento? Eu nem estou conseguindo enxergar mais.
_ Eu posso te curar, é mais rápido. Só espero recolher um pouco do seu sangue.

Com um leve toque, a entidade com quem Aurora conversava, sentada com ela na beira do píer, simplesmente recolheu algumas gotas de sangue e fez a dor desaparecer por completo, deixando apenas uma cicatriz.

_ Por enquanto não vou restaurar sua visão, porque não convém que você me veja, disse.
_ Quem é você?
_ Aqui me chamam de Quetzalcóatl. Soube que você queria uma gota do meu sangue. Inclusive, desculpe por atraí-la para cá e mandar que a picassem. Precisava de uma retribuição, e sua fé é diferente. Você não saberia como fazer, então eu fiz por você. Podemos conversar, se não se importar. Do ponto de vista de vocês, já faz quase mil anos que parti deste mesmo lugar, prometendo voltar algum dia. Na verdade, voltei várias vezes, só que ninguém percebeu. Acho que é porque as pessoas esperavam algo mais grandioso e eloquente.
_ Então você é um deus.
_ É uma forma de me descrever.
_ Por que eu?
_ Eu teria perguntas mais interessantes para fazer, se estivesse na sua condição...
_ Um deus irônico!
_ Todos somos, até o maior de nós. É que vocês nos deixam realmente poucas opções.
_ Compreendi. Então, como?
_ Para te explicar de uma maneira que você entenda, eu teria que usar física, e pelo que me lembro, você não gosta muito.
_ Não é que eu não gostava, você sabe. O problema eram mais os professores. E, assim, se você não puder me ensinar, ninguém no mundo poderá, não é mesmo?
_ De alguns professores você gostava...
_ Ah, um deus moralista, agora?
_ É outra coisa que costumamos ser.
_ Proteger, que é bom, nem um pouco.
_ Ah, a ingratidão! Você não foi picada por uma cobra há menos de uma hora?
_ Sim, uma que você mandou me picar.
_ Existem muitas cobras que não te picaram, mocinha. E, antes que pergunte, seus pais estão bem, e eu não vou ressuscitar a irmã de Tsipekua, porque, né? Você já está viva.
_ Mas então...
_ Agora o jogo virou, não é mesmo? Qual de nós dois está sendo moralista agora? Mas não se preocupe com isso. A alma é a mesma, mas o corpo é diferente, é outro. Corpos têm desejos e uma mente que, embora não pareça para vocês, está longe de saber de tudo. Então relaxe, não vou te julgar. Ela é bonita, não é?
_ Ela é mesmo.
_ Nem ouse pedir. Ela está magnífica como é, com os dons que tem e no tempo dela. Eu não questionei você quando deixou o arroz queimar semana passada. Sem falar que, por favor, não é mesmo? Que bobagem pedir para vocês irem juntas quando a hora chegar. Fiquem conectadas enquanto estão aqui, pelos momentos que tiverem.
_ Você disse para eu aproveitar melhor o momento...
_ Sim, essa pergunta é bem melhor. Mas isso acontece porque você não entende bem as coisas. Você sofre simplesmente porque o sofrimento é a maneira como reage às coisas. No mesmo sentido, não é que experiências ruins aconteçam a você. São simplesmente experiências, ensino. Você que às vezes não gosta e as qualifica como más. Você procura uma moralidade que os humanos mal criaram. Eu não tenho nada a ver com isso.
_ Então, te pergunto: foi aqui, bem pertinho, que o meteoro que destruiu os dinossauros caiu, não foi?
_ Uma de minhas melhores pedradas, eu diria. Em praticamente nenhum outro lugar do planeta o estrago seria tão grande quanto aqui.
_ Por qual razão?
_ Tédio, por óbvio. Já vinha tomando medidas para diminuir o número deles há algum tempo, mas o processo estava lento, levando milhões de anos. Então resolvi usar um artifício do tipo Deus ex Machina.
_ Ah, um piadista, temos! Sacrifícios reptilianos em larga escala, não é mesmo?
_ Eram quase todos seres irracionais.
_ Espera. Quase?
_ Alguns deinonichos estavam atrapalhando o processo, então eu passei a achar aqueles corpos um mau lugar para almas habitarem e resolvi destruir o ecossistema inteiro, mais ou menos como vocês mesmos fariam.
_ Isso eu até entendo, mas como é possível saber se um animal é capaz de pensar?
_ Criança, neste planeta o pensamento é processado no cérebro, que funciona como uma bateria, através de impulsos elétricos. Isso significa que eles possuem uma frequência, que evidentemente pode ser detectada, mesmo no caso de animais de raciocínio mais primitivo, como cetáceos, paquidermes e grandes primatas. Entenda que os corpos são como uma espécie de escola para as almas. Sabe, diferente dos anjos, que já são criados prontos, as almas precisam aprender o que é viver, e só é possível fazer isso vivendo. Daí a necessidade dos corpos.
_ Por que você não criou apenas anjos?
_ Há dois motivos: o primeiro é que alguns deles acabam se tornando demônios, que são uma dor de cabeça, e o segundo é que o livre-arbítrio é algo bem mais interessante para mim do que simplesmente encontrar a obediência que eu mesmo criei.
_ Explique por que você simplesmente não se mostra a todos nós?
_ É o que estou fazendo neste exato momento, não?
_ Eu digo para todas as pessoas. Se pararmos para pensar, a maioria de nós acredita por pura fé ou hábito. As evidências da existência dos deuses são, na verdade, bem fracas.
_ Então, o que acontece é que a humanidade entendeu errado a coisa toda. Evidentemente, nenhum deus precisa que mortais creiam nele. Vocês é que têm uma necessidade absurda e estúpida de acreditar, daí ficam inventando. E mais: punindo as pessoas mais sensatas, porque, vamos falar sério, esses sacrifícios humanos são muito desnecessários. Eu mesmo tive que vir aqui e dizer que não curtia, mas não adiantou muito, porque vocês insistem.
_ Nenhum deus gosta?
_ Existem alguns que riem muito de vocês, claro. Mas, como eu disse, é muita prepotência achar que isso faz alguma diferença para nós. Vocês fazem isso por ignorância, medo do desconhecido ou pura e simplesmente porque são tarados ou psicopatas. A maneira como tantos de vocês desejam resolver problemas simplesmente matando pessoas é uma evidência muito forte de que a evolução aqui é baixa.
_ Eu trouxe umas frutas na minha mochila. Você quer?
_ Não, criança, eu me alimento do sangue de virgens mortais!
_ Hã?
_ Estou brincando. É que eu não preciso comer, esqueceu? Mas obrigado por ter me oferecido. Na verdade, vou te dar um presente: essas sementes de arroz. Uma tribo das cercanias do Himalaia as desenvolveu e as ofertou para mim. Elas crescerão na sua terra. Eu sei que você gosta, então plante sem medo.
_ Nossa, deus, muito obrigado! Como faço para te render culto?
_ Eu realmente não preciso disso. O culto é só uma forma de vocês se sentirem mais tranquilos. Como eu disse, não nos impacta em nada. Pode seguir tranquila com sua fé Wicca. Até acho bonitinha!
_ Eu te verei outra vez?
_ Você não está me vendo? Esqueceu que estou te mantendo cega?
_ O senhor entendeu!
_ Sim, mas eu tenho poucas oportunidades de fazer graça e não gosto de aparecer para as pessoas pedindo sacrifícios estranhos, como outros por aí. Mas sim, nos encontraremos outras vezes. Não sei se já deu para perceber, mas eu gosto de você por algum motivo. Agora, não preciso dizer para você não comentar nosso encontro com ninguém, nem criar alguma seita ou coisa parecida, não é mesmo?
_ Não precisa, Senhor!
_ Um segredinho: eu não tenho gênero. De toda forma, estou indo, e quando eu estiver longe o suficiente, devolvo sua visão. Como sou eu que decido essas coisas, nem vou te desejar sorte com seus grãos de cacau, pois eu sei que você terá. Fique bem! E lembre-se de plantar o arroz. Ano que vem vou aparecer no seu restaurante para almoçar, e esta é uma das poucas comidas de vocês que eu gosto. Ah, não curto nada que tenha sangue. Inclusive, detesto quando me ofertam.
_ Você sabe que não comemos nem servimos carne.
_ Sim, eu sei. Só estava usando uma tática que tanto você quanto a "carinho" usam, disse Quetzalcóatl, zombeteiro.
_ Ahhhh, vá com Você, Quetzalcóatl! Aliás, o que eu faço com essa gota do seu sangue?
_ Guarde. Na hora certa, você saberá. Vou indo. Eu te protejo!

Aztlán: como tudo recomeçou!Onde histórias criam vida. Descubra agora