capítulo XV

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No caminho de volta para Fresno, Dan parou em Sacramento por quase dois dias. Queria verificar algo que ele e o sócio Jerry haviam discutido exaustivamente no período que ele passara em sua cidade, entre o julgamento e a audiência daquela tarde.
A conversa que tivera com Susannah ao telefone, na sexta-feira do término do julgamento, matara todas as suas esperanças de um novo começo ou, pelo menos, fora assim que sentira no choque inicial que recebera ao ser rejeitado. Chegara a Fresno de mau humor, esperando encontrar o escritório num verdadeiro caos, com Jerry afastado do trabalho e ele próprio longe dali por três semanas. Para sua surpresa, os dois jovens advogados que trabalhavam para eles haviam dado conta do recado com a capacidade de profissionais veteranos, com o aconselhamento do sócio que, em casa, continuava no aparelho de tração que o hospital lhe emprestara ao conceder-lhe alta.
Jerry passara o tempo que Dan estivera em Cacheton plane¬jando detalhadamente a abertura de uma filial da firma Curtis & Sullivan em Sacramento. De acordo com os planos, Dan estaria à frente do novo escritório, enquanto Jerry continuaria a dirigir a matriz em Fresno. O registro de todos os serviços prestados à área agrícola do Estado pelos dois sócios justificava a idéia de uma filial e Jerry confiava que o colega veria a vantagem de tal empreendimento.
Apenas depois que o ressentimento contra Susannah arrefeceu foi que Dan conseguiu ver a inovação como uma maneira de reconciliar sua carreira com a da mulher que desejava para com¬panheira. Cacheton ficava cerca de setenta e cinco quilômetros de Sacramento e não seria impossível cobrir aquela distância duas vezes por dia. Ainda assim, a dúvida persistia. Depois que se estabelecesse em Sacramento, ele teria tempo para um minu¬cioso exame de consciência, tentando descobrir se seria capaz de adaptar-se à vida da mulher que, forçosamente, teria sofrido uma mudança de atitudes ao tornar-se juíza.
Ele a amava mais que tudo no mundo, mas não estava dis¬posto a viver de modo diferente, por ter como esposa alguém que ocupava o mais alto posto da carreira partilhada por ambos.
Depois de concordar com a redução da indenização devida à Minerva pela companhia de seguros que cobria a Ag Dusters, na volta para Fresno, Dan parara em Sacramento para assinar o contrato de aluguel do novo escritório. Relutava em sair de Cacheton sem ver Susannah, mas acabara por decidir-se a deixar apenas uma carta.

Estranhamente, antes de sentir o impacto total da carta na¬quela manhã de sábado, Susannah sentiu-se aliviada. Aquele era o seu Dan, o mesmo de sempre. No que se referia aos princípios mais fortes, ele jamais estivera contra ela e era uma vergonha que tivesse duvidado dele, achando que poderia ter ficado zan¬gado com sua decisão sobre a indenização.
Ainda haveria esperança para os dois? Ela leu a carta uma segunda vez, lembrando-se dos velhos tempos, quando haviam vi¬vido juntos, permanecendo solidamente unidos nas idéias impor¬tantes e aprendendo a relevar as bobagens. Teria ela mudado no passar dos anos? Haveria se tornado intransigente, a ponto de amedrontar o homem amado, deixando-o em dúvida quanto ao acerto de tentarem uma vida em comum?
Perdida em divagações, sentou-se à mesa da cozinha com uma xícara de café na mão, olhando pela janela, imersa demais em pensamentos para ver a fulgurante beleza da árvore de flores vermelhas, cuja visão a encantava todos os dias.
A campainha da porta tocou sem conseguir arrancá-la da letar¬gia. Quando soou pela segunda vez, Susannah forçou-se a ir atender.
— Jill! — ela exclamou, contente ao ver a secretária que carregava um volumoso envelope. — Espero que não esteja me trazendo trabalho, porque é sábado. Nunca descansa?
— Relaxe, juíza. Trouxe as fotos para a campanha. Ficaram muito boas e vai ser difícil decidir quais serão usadas nos car¬tazes.
— Entre e tome um café comigo — Susannah disse, tentando acompanhar o entusiasmo que a secretária demonstrava.
Não estava muito interessada em ver as fotos que Lucille e Jack haviam insistido para que tirasse. Detestava ser fotografada. Sempre parecia pouco à vontade em todas as fotos. Colocou café para Jill, observando enquanto a moça abria o envelope e tirava mais de uma dúzia de fotos de vários tamanhos, colocando-as sobre a mesa. Em todas, a juíza aparecia de toga, em seu escri¬tório no tribunal. Jill fora a fotógrafa e muitas vezes fotografara sem que ela percebesse.
Susannah mexeu nas fotografias rapidamente, depois olhou para a secretária com surpresa e respeito.
— Jill! Você fez um trabalho muito bom! Não sabia que era tão exímia fotógrafa. Pareço realmente eu nestas fotos. Pareço uma pessoa real e não um manequim de roupa preta.
— Acha mesmo? — O rosto da moça brilhava de contenta¬mento. — Bem, escolha as que vai usar.
— Estão todas ótimas! Não seria capaz de escolher nenhuma. Deixo isso com você, Lucille e Jack.
Olhou as fotografias mais uma vez e devolveu-as a Jill.
— Não vá embora — ela pediu ao ver que a moça se levan¬tava. — Preciso falar com você.
A outra tornou a sentar-se, olhando-a com surpresa e Su¬sannah continuou a falar, em tom quase acusador.
— Você achou que errei em não acompanhar Dan à monta¬nha enquanto esperávamos que Corwin apelasse, não?
Assustada, a moça escondeu-se atrás da fachada de secretária reservada.
— Eu... não sei o que quer dizer... Susannah.
— Sabe muito bem, Jill. Não estou falando como juíza, mas como uma mulher que precisa de uma amiga.
— Bem... — Jill hesitou. — Certo, então. Veja a situação sob o ponto de vista do dr. Sullivan. Lá estava ele, eufórico pela vitória e pelo fim do julgamento, sentindo-se livre para falar com você. E o que recebe? Um balde de água gelada, com sua recusa. Não o culpe por ficar furioso.
— Eu estaria quebrando o regulamento se aceitasse o con¬vite, Jill.
— Uma pequena regra que não faria a menor diferença. Você já havia ido com ele à montanha antes.
Susannah calou-se pensativa.
— O que o velho juiz Randall diria? — acabou por per¬guntar.
A moça deu um sorriso arteiro.
— Não consigo ver o meu velho juiz numa situação dessas.
— Estou falando sério, Jill.
— Bem... — A secretária pensou um pouco. — Ele possuía um jeito todo especial para lidar com assuntos de ética. Sempre dizia que as regras da corte servem a dois propósitos. Assegurar a justiça e proteger o juiz. O primeiro dever de um magistrado, segundo ele, é nada fazer para colocar em perigo a causa da justiça. Fora isso, se o juiz torcer uma regra para sua própria conveniência, é problema dele decidir se vale a pena cair em tentação e correr o risco de ser descoberto.
Com tristeza, Susannah pensou que "torcer uma regra" por amor a Dan valeria a pena. E como valeria!
— O juiz Randall devia ser mesmo um homem notável.
— E era — Jill concordou.
— Sinto não tê-lo conhecido.

Sem nem ela mesmo saber como aquilo acontecera, de repente a vida de Susannah passou a girar em torno das eleições que se aproximavam. Todas as noites havia reuniões, ou pessoas a quem visitar ou ainda eventos comunitários a que seus conselheiros achavam que ela devia comparecer.
Encontrou-se fazendo e dizendo as mesmas coisas noite após noite, incansavelmente. Apenas o ambiente e as pessoas eram diferentes, pois os assuntos eram sempre os mesmos.
A rotina tornou-se tão monótona que em breve ela não sabia distinguir uma noite da outra nem dizer o que acontecera em determinada reunião, a não ser algo muito bom, muito ruim ou muito fora do comum que acontecesse em algumas daquelas atividades.
Por exemplo, a noite em que conheceu Resty a quem vira apenas no tribunal. Conversando com o rapaz, descobriu que Jill não tinha com que se preocupar, pois ele já estava perce¬bendo que a moça ocupava um lugar muito importante em sua vida. Quando olhava para sua amiguinha de infância, um senti¬mento muito profundo transparecia nos olhos sérios e todos os traços do rosto jovem se suavizavam.
Inesquecível também foi o dia em que Jill jogou todo o decoro profissional para o ar e entrou correndo no escritório da juíza, para comunicar que Resty não voltaria para o Alasca e que resol¬vera comprar a Ag Dusters, usando as economias feitas durante os anos de trabalho como piloto de pulverização e depois como piloto de reconhecimento, este bem mais perigoso, porém bem pago. Ashton estava disposto a aceitar o dinheiro que o rapaz possuía como entrada e receber o saldo em prestações. Só fal¬tava fazer a documentação e acertar todos os detalhes.
— Susannah, você notou como ele me olha? — Jill pergun¬tou expandindo toda a alegria que a dominava.
A juíza, sorridente, assegurou que notara, acalmando a moça que, aos poucos, voltou à atitude sóbria de sempre.
— Muito bem, vamos voltar ao trabalho — a secretária encer¬rou o momento de confidências.

Faltando pouco mais de duas semanas para a eleição, Susannah cumpriu o dever de passar uma tarde ensolarada de sábado numa feira de artesanato e culinária em Appleton, uma vila a oeste de Cacheton, habitada por grande número de pessoas idosas e apo¬sentadas. Não pôde resistir ao impulso de comprar um acol¬choado de retalhos desenhado e confeccionado por uma mulher que tinha a idade de seu pai e que unira, à mão, centenas de pedacinhos de tecido, apesar de ter os dedos atacados por artrite. Pensou que o acolchoado ficaria perfeito na cama de colunas que vira na casa de Nathan, mas que certamente era grande demais para sua própria cama que, embora de casal, era mais estreita, à maneira moderna.
Quando saiu da festa agradável e alegre, já era tarde. Mal teria tempo para tomar um banho e vestir outras roupas antes de ir à casa de Lucille e Tack, participar do jantar para o qual fora convidada.
Apressadamente, entrou em velocidade exagerada pelo portão de carros do jardim de sua casa e a curva acentuada fez com que a torta que comprara na feira para o jantar escorregasse no banco. Freando, abaixou-se para segurá-la e o carro parou brus-camente. Um sibilo estranho anunciou que algo estava errado. Arrumando a caixa da torta no banco, ela olhou para fora e viu que tinha perdido a direção e o carro entrara pelo gramado. Deu um gemido desanimado ao descer do carro e ver que o pneu fora furado por uma estaca de metal que o jardineiro deixara enfiada no canteiro.
— Estourei um pneu — ela contou a Lucille no telefone alguns minutos mais tarde. — Não posso andar por aí sem estepe e ficarei muito atrasada se for ao borracheiro.
— Não se preocupe. Mandarei alguém buscá-la — Lucille resolveu o problema, ignorando os protestos da outra. — Estará pronta dentro de vinte minutos?
Quando a campainha tocou, Susannah abriu imediatamente, usando um vaporoso vestido de voile estampado, em tons de verde e terracota e deparou com Nathan.
— Juiz! — ela exclamou, não escondendo o prazer que sentiu ao vê-lo. — Lucille não me disse que seria você a vir buscar-me.
— Ela ia mandar Jack, mas eu insisti em vir.
O jantar foi uma refeição farta, típica do lar dos Krammer, e a conversa foi quase exclusivamente sobre política. Pela primeira vez Susannah entendeu claramente por que Nathan se lançara ao trabalho de sua campanha com o mesmo empenho que usaria se fosse ele mesmo o candidato. Como Jack e seu próprio pai, Manfred Ross, ele era um político nato. Ela suspei¬tava que iria vê-lo muito pouco depois da eleição, quando não houvesse mais nenhuma campanha a fazer, principalmente se ela vencesse por um total de votos superior à soma dos votos dos dois adversários. Segundo a lei, se isso acontecesse, ela teria o cargo garantido por mais seis anos.
No fim da noite, quando já iam partir, Jack anunciou que tinha duas entradas para a corrida de cavalos da exposição de Sacramento, no dia seguinte.
— Susannah, você precisa de um descanso. Que tal você e Nathan...
— Sinto muito mas não posso — os dois responderam ao mesmo tempo, rompendo em riso.
— Obrigada, Jack — Susannah falou —, mas preciso ficar em casa e colocar uma porção de coisas em ordem.
— Obrigado — o juiz agradeceu, sem maiores explicações. No carro, Nathan olhou-a pensativo.
— Acha que Jack estava tentando alguma coisa?
— Reunir nós dois? — ela perguntou sorrindo. — Acho que sim.
— Bem, pensei em acabar logo com as ilusões dele, mas achei que não seria delicado explicar que já tenho encontro mar¬cado com outra mulher.
Era bom ter aquele homem encantador como amigo. Ela riu alto.
— Essa é uma risada honesta — ele comentou. — Existe uma tristeza indisfarçável ao seu redor, Susannah. Pensei que fosse preocupação com a campanha, mas acho que há algo mais que isso.
— Há, sim.
— Não quer me contar?
Olhando para ele, a juíza descobriu que precisava desespera¬damente da opinião daquele homem gentil, sincero e que era governado pelas mesmas regras de ética que ela.
— Gostaria muito, mas devo avisar que é uma longa história.
— Tenho bastante tempo.
Voltando a dez anos atrás, a San Francisco, Susannah contou com sinceridade completa seu relacionamento com Dan e como ele reaparecera em sua vida semanas antes. Quando ele freou o carro em frente de sua casa, ela já lhe havia contado sobre o encontro na sierra. Ele desligou o motor e ficou ouvindo enquan¬to ela descrevia o trato que fizera com Dan de ir com ele nova¬mente à montanha quando o julgamento estivesse encerrado.
Finalmente, ela contou sobre o veredicto e como ele fora para Fresno aborrecido por ela haver se recusado a ir acampar com ele pensando na possibilidade de Corwin apelar.
— O que me perturba agora, Nathan, é pensar que estou deixando que os escrúpulos me ceguem. Estaria eu realmente obedecendo à ética ou caindo fora? Não sei mais nada.
— Quem me dera ter uma resposta instantânea, minha que-rida. Essas coisas funcionam de forma diferente para cada um. Muitas regras existem para proteger os interesses da justiça, de modo que é uma questão de princípios obedecê-las. O resto fica para cada juiz decidir sozinho, eu acho.
— Essas palavras parecem ter saído dos lábios do juiz Randall — Susannah exclamou surpresa.
— De certa forma, acho que saíram mesmo. Eu trabalhava no escritório dele todas as férias de verão quando freqüentava a faculdade. Devo ter assimilado muito do que ele dizia e uma de suas declarações era de que o magistrado não devia fazer algo quando sua consciência o avisava de que aquilo interferiria na aplicação da justiça. Se a consciência não fizer nenhuma obje¬ção, estará tudo bem.
Ele fez uma pausa e deu uma risada que parecia provocada por alguma recordação.
— E ainda tem mais — ele continuou. — Ele sempre dizia que o juiz precisava tomar cuidado para não se transformar num santarrão.
Susannah sorriu.
— Obrigada. Acho que agora só me falta aprender a decidir sozinha. — Ela começou a desafivelar o cinto de segurança.
Ele desceu e deu a volta no carro para abrir a porta para ela.
— Acho que Jack tem razão, juíza. Você está precisando de descanso. Não quer passar o dia comigo e Caroline? Vocês se dariam bem. Ela é uma velha amiga, professora de medicina veterinária na Universidade da Califórnia em Daves e é uma pessoa sensacional.
— Gostaria muito, Nathan, mas não me atrevo a parar até que essa eleição se realize.
Aquele também fora um dia agradável, mas houve dias ruins. Tudo começou quando Jack apareceu no tribunal para avisar que Bancroft estava colocando dinheiro e o poder da Minerva numa campanha para derrotá-la. Mostrou-lhe um impresso maledicente, cujo tema ela ouviria sem parar até quase o dia da eleição.

A juíza Susannah Ross, se eleita, transformará a opinião dos jurados de River County em lixo, como fez no caso Minerva.

— E o que é pior — Jack disse sombriamente — estão dizen¬do que Bancroft está apoiando Mel Parker.
— Mel vai ter que dividir os votos com Elmer Fairchild.
— Os votos de Elmer virão de antigas famílias que admiravam o pai dele, mas Mel ficará com todo o resto.
— Parece desanimado, Jack.
— Ouça, Susannah, Mel só está interessado em duas coisas: dinheiro e ele mesmo. Fará tudo para poder tirar proveito da posição de magistrado.
Na semana seguinte, ela sentiu todo o impacto da propaganda negativa de Bancroft durante o encontro na Prefeitura quando os três candidatos tiveram chances de fazer seus discursos. Sem falsa modéstia, ela podia dizer que seu desempenho fora muito superior ao de Mel e Elmer, mas quando a parte de perguntas e respostas começou ela percebeu que todas as questões que lhe eram dirigidas giravam em torno do tema erguido pelos folhe¬tos caluniosos.
Parecia um perverso ataque premeditado e ela estava exausta quando acabou de responder. Ficou acanhada quando Nathan lhe apresentou Lew Handley do Correio de Cacheton. No calor do debate havia esquecido completamente a presença do jorna¬lista e sentia-se humilhada pensando que ele presenciara o mas¬sacre.
A noite foi um pesadelo e ela não se sentiu melhor nem quando Nathan assegurou-lhe que Bancroft, julgando fazer-lhe mal, havia na realidade lhe dado uma oportunidade de ouro para expor suas idéias e modo de conduta aos eleitores.
— O que Lew Hadley disse? — ela perguntou.
— Nada. Lew é caladão.
Na quarta-feira da semana precedente à eleição, Susannah já se havia resignado à idéia da derrota. Escondia os sentimentos de seus animados colaboradores, mas sabia que todo o trabalho da campanha e todo o otimismo de pessoas como lack e Lucille seriam soterrados sob a avalanche insidiosa desencadeada por Bancroft.
Começou a pensar em como levaria a vida quando não fosse mais juíza, sem Dan e sem a carreira que amava. Nos momentos de solidão aprofundava-se em pensamento, voltando ao passado, sorrindo com humor irônico ao lembrar-se das palavras que sua enérgica e ambiciosa mãe costumava dizer para animá-la.
— Não vou tolerar uma derrota, Susannah. Não criei minha filha para o fracasso.
Aquelas palavras sempre haviam funcionado, mas daquela vez tudo parecia realmente perdido.



(Completo) Sempre Te Amei, Nunca Te Esqueci Onde histórias criam vida. Descubra agora