O cenário já era seu conhecido. Conhecia de cor as árvores que o rodeavam, sabiam onde encontrar cada um dos ninhos dos pássaros que chilreavam, o verde da erva que calcava, o ranger dos galhos sob os seus pés. Até os cheiros suaves e a brisa que corria eram suas conhecidas.
O tempo era o de trovão, aquele que antecede uma tempestade, do que aliás, era presságio as nuvens negras que se aproximavam. O ar estava húmido, quente e havia na atmosfera uma calmaria própria que avizinha o que está por vir.
Não precisava de olhar para as suas mãos para saber que estas seriam mais pequenas que as suas. Em vez disso, olhou para o céu, sentindo o cheiro da chuva que em breve começaria a cair.
Quando deu por ela, já estava a correr, saltando alegre de raiz em raiz, pelo caminho já tão seu conhecido. Normalmente teria a companhia do seu primo, mas este tinha ficado doente e não tinha podido acompanhá-lo nas brincadeiras habituais.
A sua mente gritava que parasse e voltasse para trás, mas o seu corpo não obedecia, correndo e rindo alegremente, como se estivesse em piloto automático. No fundo, era o que estava a acontecer porque, apesar daquele ser o seu corpo, ele era um mero espectador, incapaz de mudar uma vírgula que fosse daquela história.
"Vais cair!"- tentou avisar.
No entanto, tal como sabia que ia acontecer, o aviso foi em vão e ele sentiu a relva contra as suas mãos e joelhos, fazendo-os arder. Levantou-se e, apesar de lhe doer, ele era um rapaz grande e não era uma queda que o iria fazer chorar. Ele tinha prometido ser forte!
Limpou a terra e relva que tinham sujado a sua roupa o melhor que pôde antes de retomar a sua corrida. A sua mente mais uma vez gritava que parasse, tentando a todo o custo tomar controlo do corpo pequeno da criança. No entanto, era escusado e, por fim, acabou por se resignar e simplesmente observar a cena seguinte pela enésima vez, consciente de que nada poderia fazer para impedir o que iria presenciar em seguida.
Tudo estava exatamente como se lembrava, sem tirar nem pôr. A casa silenciosa era simples, mas limpa e cuidada. Sabia que, àquela hora, era costume haver já um pequeno lanche preparado para si e que ficou desiludido por não sentir o cheiro de algo doce à sua espera.
A porta da frente chiou ao ser arrastada e ele tirou os sapatos rapidamente com os próprios pés, deixando-os na entrada de qualquer forma. A casa estava fria e silenciosa e reparou que as janelas estavam abertas de par em par. Normalmente a sua mãe fechava-as mal o tempo começava a adivinhar chuva e sabia que esta tinha um excelente olfato.
Mesmo confrontado com todas as evidências, ele era uma criança e, como a maioria das crianças, a sua mente inocente tratou de o acalmar, dizendo a si mesmo que provavelmente a sua mãe tinha-se distraído a tratar das suas roseiras.
Passou pelas divisões a correr, chamando alto e bom som pela sua mãe e dizendo que tinha fome. A sala e a cozinha eram espaços pequenos e ele rapidamente alcançou a porta que dava para o pequeno jardim das traseiras. Ele não percebia como a sua mãe gostava tanto daquele jardim tão pequeno, quando havia uma floresta tão grande lá fora.
Franziu o nariz quando um cheiro desconhecido o atingiu. Conseguia distinguir claramente o cheiro da terra quente que se prepara para a chuva, mas havia nesse odor tão familiar, um outro que ele não soube distinguir.
Não soube porque é que o seu estômago se remexeu, agoniado e, automaticamente, desceu as escadas lentamente, conduzido pelo misterioso odor que era cada vez mais intenso. O vento agora soprava mais forte e o murmurar das folhas parecia querer dizer-lhe algo, como se a própria floresta o quisesse avisar de um mau presságio.
A cada passo que dava, o cheiro metálico era então mais enjoativo, mas não conseguia parar de caminhar lentamente em direção ao odor. Era a primeira vez que chegava tão longe no sonho e isso despertou-o da sua letargia. Compartilhava com o garoto não só os olhos que o permitiam observar toda a cena, mas também o sentimento de curiosidade pelo que iria encontrar.
Aproximava-se da roseira preferida da sua mãe: a roseira branca. Lembrava-se que as flores delicadas tinham um aroma adocicado e não percebia porque é que o cheiro metálico parecia vir de lá.
Viu manchas escarlate a tingir as pétalas outrora imaculadas e, antes que pudesse perceber a sua origem, uma gota escorreu pela rosa mais pequena, como se em câmara lenta. Seguiu com o olhar o percurso da pequena gota escarlate e suprimiu um grito de horror.
O odor metálico que sentira estava agora bem catalogado na sua mente. Era o odor de sangue, tão intenso devido à poça que se acumulava por baixo do corpo daquela que o costumava reconfortar sempre que tinha um pesadelo ou sentia medo por causa dos trovões. Do corpo daquela que sempre o protegera. Um trovão alto rebombou no céu, camuflando o seu uivo de dor.
Não teve tempo de chorar a sua perda naquele momento, nem de segurar pela última vez a mão da sua progenitora que, tendo em conta a sua palidez, provavelmente estaria gelada. Provavelmente seria o melhor, pois assim o garoto guardaria na memória o calor daquela mão que tanto gostava de segurar.
-Não encontramos o garoto em lado nenhum! Provavelmente já regressou a casa!
Olhou aterrorizado para a porta aberta, sabendo que os intrusos já estavam dentro de casa e não demorariam a encontrá-lo. Obrigou as suas pernas bambas a levantarem-se e limpou as suas lágrimas que insistiam em cair, teimosas. Não era altura para ter medo. Ele era corajoso. A sua mãe sempre dizia que tinha orgulho em ter uma cria tão corajosa como ele.
Fechou os olhos e apurou os sentidos. A chuva começava a cair, sendo difícil distinguir os vários odores que o circundavam. Também o som que as gotas de água faziam ao caírem cada vez mais abundantes camuflava os sons dos intrusos. Mesmo assim, a sua mãe desde sempre o tinha treinado, a maioria das vezes sem que ele próprio tivesse consciência disso, através de brincadeiras. Por isso, conseguiu perceber que os sons dos passos que se aproximavam estavam cada vez mais próximos. Eram dois... não, três.
Ele era corajoso, mas não estúpido e sabia que não teria qualquer hipótese contra três lobos adultos. Agradeceu à natureza aquela tempestade que, apesar de lhe incapacitar parte dos sentidos, lhe dava uma oportunidade de escapar. Se a chuva e trovões eram sinal de desvantagem, os seus oponentes teriam de enfrentar as mesmas dificuldades, o que lhe dava uma pequena esperança.
Ouviu o vento novamente passar por entre as copas frondosas e, desta vez, pôde jurar que ouviu um sussurro urgente.
"Corre, Kookie! Corre e não olhes para trás!"
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Blood Sweat and Tears-JiKook/KookMin
FanfictionNum passado assim não tão distante, um pequeno alfa é obrigado a desaparecer sem deixar rasto. No dia em que a sua infância terminou, ele não só perdeu a sua família, como todas as suas memórias. Tudo o que lhe resta é o mesmo sonho todas as noites...