P A R T E II
Eu gosto de quando estou em casa, correndo de um lado para o outro atrás dos meninos depois de um dia cheio, eles me dão paz ao mesmo instante em que a tiram de mim. Estou aqui, mas constantemente me lembro deles, se estão bem, o que será que estão fazendo, se minha mãe já deu a janta deles. Sinceramente não sei o que seria de mim sem a minha mãe, ela me ajuda tanto, em todos os aspectos, desde cuidar dos meninos a cuidar das minhas mazelas.
Preciso me concentrar, acelerar meus passos e frear essa mente que vive me atordoando sempre a me lembrar do que há para ser feito e de... Bem, coisas passadas.
Concentração. Digo para mim repetidas vezes. Concentração. Não pare, continue e se concentre.
Então eu vou tentando a cada novo passo da corrida focar nos meus movimentos ou no céu de fim de tarde que se ergue tão bonito pintado pelo sol que se põe no horizonte. O rio se embebeda toda vez do amarelo cerveja do pôr do sol. Sempre corro pela orla para ver esses detalhes que em outros momentos deixo que se percam de mim. Mas nos últimos dias, nos últimos dois meses aliás, minha mente se aproveita até mesmo desse momento para trazer à tona coisas que quero esquecer. Eu reconheço a proximidade do acontecido com o tempo presente e entendo que faz parte lembrar, mas eu não quero, não quero mesmo. Rememorar não muda nada no que aconteceu, nem no que eu sinto sobre isso.
Eu me julgo transformada com o que se sucedeu, me sinto livre, porém, muito do que sou ou estou está emaranhado, pois, não sei delimitar com clareza o que é, de fato, meu. É estranho pensar isso, sou uma mulher de trinta e quatro anos com questionamentos sobre o que gosta, o que quer e sobre quem é. Não sei porquê, mas no meu imaginário, pessoas com essa idade, adultos feitos, sabem quem são. No entanto, eu não sei com limpidez quem sou, o que é meu e... Bem, o que é seu.
Mas estou me refazendo, isso é inegável, permito a mim mesma me reconhecer já que ser uma com você não faz mais sentido para nenhum de nós. É interessante lembrar da ausência de sentido que tínhamos e ainda temos enquanto pratico minha corrida diária, porque foi durante uma dessas minhas corridas que tive a linda audácia de demonstrar fielmente que para mim já não dava mais.
Cessei meus passos, o peito subindo e descendo, comprei uma garrafa de água em um quiosque e olhei para a rua, as lojas ainda estavam abertas, pessoas passavam de um lado para o outro nas calçadas, muitas delas carregando sacolas de compras, os carros parando para os pedestres atravessarem e alcançarem a orla. Então olhei para o rio, o Velho Chico, o amorzinho dessa cidade do sertão, dessa quentura constante que eu não consigo me acostumar.
Não estou habituada a parar meu exercício no meio do trajeto, que eu me lembre nunca fiz isso, mas algo me ocorreu para fazê-lo hoje, por isso sento em um banco de pedra sob uma árvore e decido que, se minhas lembranças estão com tamanha insistência em aparecer, talvez eu devesse me aquietar, sentar e vê-las, senti-las, pois isso poderia ser a solução ou o início dela, pelo menos, para o caos que anda atordoando meus pensamentos se ausentar, se aquietar.
Arrumo minha postura no banco, respiro fundo e permito que as lembranças me invadam e assim elas fazem. A rememoração toma seu ponta pé inicial justamente pelo início de nossa história desmantelada de amor.
Recortes de quando ainda estávamos no colégio retornaram a minha mente, do nosso início, depois veio o casamento, toda aquela paixão e felicidade, depois sua conquista de passar no concurso público e termos de mudar de cidade, mas que bom, eu gostei e gosto da cidade para onde nosso destino nos trouxe. Impossível não me lembrar de quando engravidei, de como ficamos bobos com isso e de como as coisas começaram a esfriar. Sua dedicação extrema pela universidade, por suas obrigações de professor e eu com as minhas do jornal. Nossos filhos eram o vínculo que nos unia, pois a noite, quando retornávamos a casa e dávamos atenção a eles isso nos aproximava de uma maneira que não acontecia em nenhum outro momento.
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C A I S
Short StoryO que se vê ao olhar para o Cais? Existe um rio, existem pessoas, pulsa vida. A beira do Rio São Francisco diversas histórias começam, se cruzam, acontecem, mas, se vista por olhos não tão delicados, não se percebe nada. Esse livro de contos é um co...