CONTO UM - Cássio

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A Poesia de Cada Um

P A R T E I

Um ônibus passou a toda velocidade as minhas costas e isso me fez pensar que de um lado eu tinha a calmaria e do outro o caos da cidade com toda a sua agitação. Tentei novamente me concentrar no rio, no correr das águas, no céu azul que me transmitia a paz que buscava naquele momento, esse lugar me faz querer parar, não no sentido de abandonar tudo, mas de me sentar e conversar comigo mesmo, refletir sobre tudo e descansar minha mente que anda tão cheia de ideias e deveres e sentimentos que as vezes nem dormir dá jeito.

O sol já não muito alto refletiu sua luz no meu relógio prateado, fiquei tentado a olhar as horas para perceber a quanto tempo já estava ali, daqui a quantas horas seria o momento de ir a aula na faculdade. Não o fiz, me contive e não olhei o relógio.

Eu vivi meus últimos dois anos tão focado nas horas, correndo de um lado para outro em busca de colocar tudo no seu lugar, de servir da melhor maneira, de ser útil e o melhor que, agora, eu só quero algumas horas para mim, para caminhar por essa orla e vislumbrar o Velho Chico.

Uma barquinha foi saindo repleta de pessoas e me deu vontade de pegar ela e atravessar o rio por atravessar, para sentir a brisa leve e o cheiro de peixe, mas também não o fiz, estar sentado aqui sobre o banco de pedra está bom o suficiente, não quero sair ainda.

Uma moça está sentada a uma distância breve de mim, ela fita o rio com uma intensidade, age como se não tivesse ninguém por aqui, nenhum carro, nem um ônibus ou moto barulhenta passando logo atrás de nós, na avenida. Ela tem um caderninho sobre o colo, a moça me transmite uma sensação de intensidade e paz, é difícil descrever, mas ela é alguém digna de ser observada em um momento em que se busca reflexão. Talvez seja a postura dela, de quem sonha acordada, ou a beleza que, não me enganarei, achei bastante atraente. Os cabelos sãos cacheados e um pouco volumosos na altura dos ombros, a pele é morena e me lembra canela. A moça cor de canela.

Resolvi deixar de olha-la, pois em algum momento ela poderia notar minha existência e, naturalmente, se incomodar por ter um estranho encarando-a. Voltei-me novamente para o rio, outra barquinha apareceu no cenário, mas essa estava chegando e uma quantidade grande de pessoas saiu dela, possivelmente pessoas que trabalhavam em Petrolina e que agora retornavam a suas casas. Isso me fez lembrar da ponte e mirei ela, logo vi os carros indo e vindo, os ônibus e as motos ligeiras buscando cortar todos. Então me peguei pensando que, diariamente, eu era uma daquelas pessoas que atravessavam a ponte para estudar ou trabalhar. No meu caso era estudar.

Sou académico de ciências contábeis em uma faculdade privada em Petrolina, a cidade vizinha, a que fica do outro lado do rio. Estou no sexto período e tudo já está tão cansativo. No início, era só alegria, farra, ficar com as garotas do campus, mas hoje já não tenho nem tempo, nem cabeça para as duas últimas coisas, acredito que cresci, amadureci e comecei a ver algumas coisas de maneira diferente.

Meu pai é um empresário de Juazeiro, ele possui um supermercado aqui e outros dois menores, no interior. Eu trabalho para ele e recebo por isso, e é com esse dinheiro que eu pago a mensalidade da faculdade e gasto com lazer. Eu atuo na parte de contabilidade, sempre admirei meu pai pela sua garra e inteligência para o comércio, então cresci com o interesse na área dos negócios e, por enquanto, é algo que me fascina. No entanto, está consumindo muito de quem sou, sinto que estou me gastando e começo a me questionar de qual o sentido para uma vida tão cheia e corrida?

Por esse motivo estou aqui, na orla, mirando o rio e buscando a calmaria. Estou buscando esquecer minhas burrices, ao menos por alguns minutos.

Senti o olhar da moça ao meu lado em minha direção e resolvi virar também para ver seu rosto com mais clareza, mas para minha decepção ela olhava qualquer coisa acima dos meus ombros, no entanto, como pensei, consegui notar seus traços que, já tinha visto de relance, eram lindos.

- E aí? Boa tarde, que tal um brigadeiro? - Disse uma voz as minhas costas. Virei-me e percebi que a fala vinha de um homem alto e de cabelos cacheados a altura dos ombros. Ele trazia uma vasilha comprida nas mãos e tirou a tampa para que eu pudesse ver seu conteúdo.

- Boa tarde, hoje não! -Respondi com um sorriso.

O homem assentiu.

- Tem certeza? Ter uma vista dessa diante dos olhos - ele falava do rio - e comer um doce, tem coisa melhor? ...

Eu ri e acabei por comprar um brigadeiro e, seguindo seu rumo, o homem foi oferecer a moça cor de canela.

Percebi que era para ele que desde antes ela olhava, no entanto, apesar das investidas dele, ela não comprou nenhum doce. Fiquei observando-a de canto de olho, enquanto ela, por sua vez, seguiu o homem do brigadeiro com a cabeça e logo depois, em um ato rápido, abriu o caderninho e começou a escrever ligeiramente. Algumas vezes ela levantava a cabeça, olhava o rio e voltava ao caderno. Não entendi inicialmente o que estava acontecendo e acabei me desligando dela para comer meu brigadeiro.

Eu não deveria e sabia que ia ter que pagar por isso na academia, pois estou com sobrepeso e meu colesterol ruim está acima do normal. Isso que dá viver almoçando na praça de alimentação do Juá Garden, o shopping da cidade. Enfim, estou tentando seguir uma dieta que, por vezes, dá errado porque eu fujo dela, tenho péssimos hábitos alimentares e disso não me orgulho de maneira alguma.

O sol começou a se pôr, o céu assumiu um tom alaranjado que me fez sentir como se estivesse flutuando, pois o sentimento que pairava dentro de mim era a gratidão por ter a oportunidade de estar aqui nesse momento, não trancado numa sala com ar condicionado pedindo por manutenção que sempre esqueço de mandar fazer. A paisagem está quase surreal, os prédios de Petrolina tem sua estrutura espelhada na água do rio, as barquinhas parecem desenhadas, iluminadas por aquela luz, é simples e belo. Me sinto ainda mais grato por me permitir sair um pouco para vir aqui, sinto que estou crescendo ao me dar conta de que preciso de tempo para mim, mas esse tempo, por hoje, está no fim, preciso voltar à rotina, então, encaro meu relógio e percebo que são exatamente 17h35m. Olho mais uma vez para o Velho Chico e depois para a moça cor de canela que lê o seu caderno, me despeço em meus pensamentos dela e caminho em direção ao meu Honda City cinza, coloco alguma playlist de metal alternativo e dou a partida.

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