Começo pelo fim.
Pelas palavras belas e frases doces.
Pelo abraço terno e apaixonado.
Pelos beijos vagarosos e prolongados.
Pela esperança e deleite, nos sonhos que só poderiam ser bons e eternos.
Nas promessas de nunca esquecer.
Mas nem sempre tinha sido assim.
O início, há muitos anos atrás, tinha começado numa cidade, que a nenhum dos dois dizia muito. Frenética e sempre com pressa de chegar a algum lado, a cidade que já não era a única que nunca parava.
Trabalhávamos para pagar as aulas, que tínhamos decidido frequentar e para sobreviver, por acharmos que era a única coisa a fazer.
Que sorte e que tontice.
Os dois sacrificávamos as horas todas a trabalhar, ou a estudar, ou a dormir... pouco.
Um dia tropecei nela. Tropecei mesmo!
Estava a apertar o cordão do sapato, eu, cansado talvez, não a vi e caí-lhe em cima. Ainda por cima, levo com a caixa da minha própria viola na cabeça. Doeu tanto, que passado um mês ainda senti-a o galo que aquilo me fez.
Ela, por sua vez, cai para lado desamparada e desnorteada, por ter levado com alguém de 1,90 em cima. Começa a chorar compulsivamente... Eu, até ia pedir desculpa e sair dali de fininho, mas não consegui, não assim, com ela a chorar desalmadamente... "Foge, mulher, não foi assim tão forte, foi?!"
E ela chorava e chorava sem parar.
Eu já nem sabia o que fazer! Dei-lhe um lenço, a manga da camisa e ainda procurei guardanapos velhos na mochila, mas já nem esses chegaram.
Passado o tempo que ela lá quis, parou de chorar.
Olhos de Drácula e nariz de batatinha, olhou para mim finalmente, depois de eu lhe perguntar este mundo e o outro, e ela lá me dizer, que não tinha onde ficar naquela noite, que tinha sido despejada.
O seu inglês era péssimo, mas ao fim de algum tempo lá percebemos, que falávamos a mesma língua.
Estava um calor que ninguém aguentava.
Estar ali naquele passeio quente a fumegar, o cheiro a começar a chegar das lojas de comida que havia por ali perto, que entretanto iniciavam a preparação do jantar daquele dia, ou o almoço (naquela cidade nunca se sabia). Nada daquilo era bom.
Levantei-a finalmente e disse-lhe para vir comigo.
A ela e a mais 5 volumes, entre sacos, mochilas e caixas. Parece que tinha sido despejada ali mesmo, não acreditei que tivesse vindo sei de lá onde, a carregar com tudo aquilo sozinha.
Chamei um taxi e fomos para o meu apartamento de 15, 20 metros quadrados, num prédio chique, mas mesmo assim pobretanas para aquela cidade. Pelo menos tinha vista para o grande parque.
Não nos demos logo bem. Era um inferno naquele cubículo, pronto era chique, mas pequeno demais. Também estávamos sempre a esbarrar um no outro, mas dava um jeitão dividir a renda.
Ela só ficava um pouco fula, quando eu tinha que ensaiar e sacava da guitarra, ligava o amplificador e ali ficava horas a tocar o mesmo riff, de uma qualquer musica romântica. Era o que tinha de ensaiar para ir tocar a um bar manhoso mais tarde.
Por outro lado, ficava eu fulo, cada vez que ia ao lavatório e ele estava cor-de-rosa, ou verde, ou preto. Pincéis e tintas espalhadas na cozinha então era demais. E as minhas roupas, que as tinha que as pendurar à vista na entrada, junto com as dela, estavam todas com pinceladas aleatórias, que eu achava que não combinavam nada com nada. Naquela cidade podia andar-se de qualquer maneira, mas um certo bom gosto, mesmo que excêntrico, era fundamental.
Ora, assim passamos semanas, meses, entre as vidas agitadas, que aquela cidade agitada nos pressionava a viver.
Um dia disse-me que ia sair. Já não aguentava mais.
Então, no único espaço livre da parede e que até era mesmo à medida dela, daquele acanhado apartamento, encosto-a à parede e tapo-lhe a boca com a mão.
"Mas quem se julgava ela, para se ter posto à frente dele, agachada, a fingir que atava o sapato?!"
Arregalou-me aqueles olhos!
"Quem se julgava ela, para chorar daquela maneira desmesurada, naquele chão quente e sujo, com um pouco de tudo entranhado desde há 100 anos?
Respirou forte pelo nariz!
"Quem se julgava ela, para ter feito de tudo para eu me apaixonar?"
Teria chamado a policia, se eu não lhe tivesse dito aquilo.
Deixou-se escorregar pela parede abaixo rendida, esgotada, baixei-me com ela , rendido, esgotado.
- Como consegui estar desde aquele primeiro dia apaixonado por ti? - disse-lhe.
Aquela miúda frágil, mas a julgar-se forte, sempre de olheiras pretas, com o risco do olho esborratado, a escorrer tinta, para disfarçar a beleza.
A miúda a tentar esconder algo de belo e precioso, atrás da franja comprida, loura e desordenada sobre a testa, a esconder como era e o que não queria que ninguém visse.
A miúda que insistia em guardar a sua vida a 7 chaves, com medo que alguém descobrisse como o seu interior era belo e interessante e esse alguém quisesse ficar com ela.
A miúda zangada e revoltada que queria mostrar que não valia a pena perderem tempo com ela. Que só queria que a deixassem andar por ali.
- Vou-te dizer isto muito baixinho, - digo-lhe eu:
- As músicas que tocava, eram para ti,
- Irritava-te para que me tirasses do sério!
- As vezes que fiquei a mirar-te a dormir, a comer, a pintar, a estudar.
- Amuava para teres pena de mim e falares comigo!
- Tantas vezes te disse que eras bonita e não ouviste.
- E eu zangava-me quando chegavas já tarde e cansado e fingia que dormia.
- Tantas vezes te beijei e não sentiste.
- As vezes que me deixei estar nos teus braços...
- Tantas vezes te disse que eras minha e não quiseste ser.- E as vezes que desejei ser, o que quisesses que fosse...
Peguei-lhe na cara com as duas mãos.
- Como consegui estar desde aquele primeiro dia apaixonado por ti?- E agora que fazemos?