1. a noite na cidade da baía

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Inúmeras. Essas foram as vezes que me peguei pensando se conseguiria colocar em palavras qual havia sido, exatamente, o motivo pelo qual eu fiz o que fiz naquele fatídico dia de Fevereiro de 1987.

A resposta, entretanto, era sempre a mesma: inconclusiva.

Por vezes, acredito que sei o que aconteceu e por quê. Mas em outras... Não consigo nem mesmo pensar a respeito sem sentir uma honesta vontade de enfiar parafusos na minha cabeça, porque é óbvio que perdi alguns.

Porque Kim Namjoon não era só o representante da turma. Não era só o orador escolhido para dar aquele chatíssimo discurso motivacional para os colegas formandos. Não era só um estudante altamente qualificado e admirado por todo mundo na escola, por ser extremamente inteligente e carismático. Ele era meu melhor amigo. Mais que isso, até. Minha alma gêmea, ouso dizer. A "outra metade da minha laranja", como minha mãe costumava brincar. Nós realmente tínhamos aquele tipo de relação onde sabíamos tudo um do outro e nos compreendíamos melhor do que qualquer um podia imaginar.

Por vezes, chegava até a parecer que éramos nós dois contra o mundo. Como quando escapávamos de casa no meio da noite porque Namjoon queria ver as estrelas lá da beira da estrada, onde a ausência dos prédios tornava a vista mais limpa. A movimentação dos carros trazia um sentimento particularmente especial durante as horas em que Namjoon passava olhando para o céu. E eu, para ele.

Ou quando gastávamos horas do nosso dia, depois da aula, andando pela cidade em nossas bicicletas, ouvindo fitas gêmeas em nossos toca-fitas portáteis, gritando nossas conversas ao vento ao que tentávamos nos manter lado a lado. Nunca havia propósito algum naquele tipo de passeio, era apenas o gostinho de liberdade que vinha quando o vento batia contra nossos rostos. E as ocasionais apostas que fazíamos e que, odiosamente, ele costumava ganhar porque andava de bicicleta melhor que eu.

Eu conhecia aquele garoto como a palma da minha mão. Podia dizer o que ele estava pensando e sentindo apenas de olhar para o seu rosto. E, Deus abençoe aquele grandalhão atrapalhado, porque sabe-se-lá o que teria sido dele, se eu não tivesse passado boa parte da minha vida literalmente em seu flanco, pronto para segurá-lo e impedi-lo de cair de cara no chão todas as vezes que tropeçava no ar ou esbarrava em absolutamente qualquer coisa que passasse perto demais. Mas ele era assim comigo também, me conhecia melhor do que eu gostaria que ele conhecesse. E sempre estivera ao meu lado para me impedir de cair, contudo, em um nível mais espiritual. Ele parecia sempre saber o que dizer ou o que fazer quando me pegava na beira de um precipício, pronto para cair.

Por isso e tantas outras coisas que o silêncio tendia a ser extremamente confortável entre nós dois. Costumávamos estar bem só por estarmos juntos. Era honesto e recíproco. Confortável e reconfortante. O que me fazia acreditar que eu nunca precisaria imaginar um mundo onde ele não estaria ao meu lado. Onde nossas conversas não existiriam e ele não estaria ao alcance das minhas mãos sempre que eu estivesse inseguro ou assustado demais para prosseguir por conta própria.

Nós éramos assim, orbitando em torno um do outro como satélites do nosso próprio mundo.

Ou, pelo menos, era o que eu acreditava.

Até Namjoon abrir furos em algumas camadas da atmosfera do nosso mundo:

━━ Acho que estou gostando de alguém. ━━ Ele disse de repente, quebrando o silêncio.

Era agosto, final do verão. 1986. Eu tinha 17 anos e Namjoon estava prestes a completar a mesma idade. E era a primeira vez que um de nós dois falava sobre sentimentos românticos.

Estávamos hospedados na casa do pai dele em Sokcho, uma cidade litorânea. Era para lá que fugíamos sempre que estávamos de saco cheio da vida. Era quase como um lugar secreto, já que ninguém em nosso círculo social habitual sabia por onde andávamos quando estávamos por lá. O pai de Namjoon era ótimo, absolutamente divertido e tranquilo. Pouca coisa no mundo conseguia abalar seu humor, aparentemente. Mas ele não poderia sequer concorrer ao prêmio de pai do ano. Estava muito longe disso. Ele tinha um único interesse na vida: ele mesmo. Vivia de acordo com os próprios interesses, então parecia sempre ocupado demais com seu trabalho ou com as garotas que levava para casa. Contudo, não destrava Namjoon ou fingia que ele não existia. Sempre tinha as portas abertas para recebê-lo em sua casa, mesmo que a única interação real entre os dois acontecesse quando o Sr. Kim perguntava se Namjoon queria mais dinheiro. Namjoon nunca recusava.

balada de uma saudadeOnde histórias criam vida. Descubra agora